A noite chegou

“Estamos sendo liderados por uma mula”, alguém escreveu. E, embora eu não faça nenhuma objeção ao se comparar intelectualmente o atual presidente da República ao forçado cruzamento entre jumentos e cavalos, acho a frase inexata.

Mulas são estéreis. Jair Bolsonaro, infelizmente, não. Ele gerou numerosa descendência. E por conta disso atualmente temos que administrar, junto com todo o resto, uma crise diplomática com a China. É um “vírus chinês”, endossou um de seus filhos, que o brasileiro, em sua imensa sabedoria, fez questão de também transformar em deputado federal – quase embaixador. Desgraça pouca é bobagem.

Se Jair Bolsonaro fosse apenas uma mula, poderíamos nos considerar sortudos.

Não que o Partido Comunista Chinês não tenha tido culpa nenhuma no desembarque da atual pandemia. Quanto mais leio a respeito, mais me certifico de que a coisa poderia ter sido contida se as autoridades de Wuhan tivessem adotado rapidamente medidas sanitárias no lugar de rapapés burocráticos.

Por outro lado, quando Pequim tomou conhecimento do problema, agiu rápido. O posterior e extraordinário esforço chinês ganhou tempo para que os governos do que nos habituamos a chamar de “mundo livre” pudessem se preparar.

Não se prepararam, ignoraram os alertas, como as autoridades de Wuhan, e cá estamos nós. À beira de empilhar sabe-se lá quantos milhares de cadáveres e avistando no horizonte uma recessão de US$ 2 trilhões, que vai gerar pelo menos 25 milhões de desempregados.

Será um longo e tenebroso inverno. Duro, sofrido.

O mundo todo, porém, é culpado dessa negligência. Desde o início de 2018, cientistas de uma força-tarefa convocada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) alertavam para a possibilidade de uma epidemia internacional e devastadora surgir. Ela foi batizada de Doença X.

Foram solenemente ignorados por autoridades chinesas, italianas, americanas, brasileiras, francesas, guatemaltecas. Foram solenemente ignorados por todo e qualquer possível financiador de pesquisas. Não há perspectiva de lucro quando se investe no que ainda não afeta ninguém.

A Covid-19 é apenas a primeira Doença X prevista por essa força-tarefa. Existem pelo menos 1,6 milhão de vírus desconhecidos no planeta, e 800 mil deles podem afetar seres humanos – estima-se. Estatisticamente, a perspectiva não é boa.

Nas palavras do pesquisador Peter Daszak: “Estamos enfrentando a primeira Doença X. Covid-19 é ela. Teremos outras. Elas virão rapidamente e não podemos mais ficar sentados, esperando”.

Enquanto não levarmos a ciência a sério, estamos no escuro.

Escrevo este texto no domingo à tarde. Neste momento, estima-se que um bilhão de pessoas de todo o mundo estejam confinadas. Por ora, foi a única maneira que encontramos para lutar contra nossa maior emergência sanitária em um século. Um acontecimento que pode redefinir uma geração.

A boa notícia é que, mesmo atrasados, estamos cooperando, conforme vamos nos dando conta da gravidade da situação.

O Homo sapiens deixou de ser apenas um animal indefeso perdido nas savanas africanas e à mercê de ser partido ao meio por um elefante quando aprendeu a cooperar. Nossa espécie é a única em toda a história da Terra capaz de agir estrategicamente fora de um simples bando, em grandes grupos. Quando conseguimos isso, foram os elefantes que começaram a ter um problema.

Cooperando, criamos cidades, derrubamos tiranos, fomos à Lua, aprendemos a passar fio de dental e a lavar as mãos de acordo com as orientações de Drauzio Varella em um vídeo no YouTube. Em poucos milhares de anos deixamos de ser insignificantes para nos tornarmos os senhores do mundo.

Agora, a noite chegou. A noite da minha geração. E cooperação é a nossa melhor chance de diminuir as escoriações causadas pelos tempos que vêm por aí.

Não vai ficar tudo bem. Vai ser longo, dramático, em alguns momentos desesperador. Mas venceremos. Nós estamos vencendo há cem mil anos.   

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