A longa marcha

“Eu cresci num mundo em paz. A Segunda Guerra Mundial já estava enterrada no passado havia mais de vinte anos quando nasci; o serviço militar obrigatório deixara de existir muito antes de eu entrar na escola. O maior conflito que já tinha visto eram as brigas de sábado à noite em Manchester. Fico sentado ao lado do túmulo vazio de Yi por uma hora, tentando imaginar este homem, dez anos mais jovem do que eu, puxando o gatilho e acabando com a própria vida. Mas não consigo estabelecer uma empatia. Sua vida e sua morte são muito radicais.”

O trecho é do livro A Longa Marcha, dos jornalistas ingleses Ed Jocelyn e Andrew McEwen, que em 2002 resolveram refazer os 6,4 mil quilômetros a pé da fuga do primeiro front do Exército Vermelho de Mao.

Na passagem, os dois estrangeiros exaustos estão diante da cova que primeiro abrigou os restos de Yi Dangping, filiado ao Partido Comunista Chinês, que morreu durante a mais encarniçada das batalhas da Longa Marcha, quando os vermelhos tentavam cruzar o rio Xiang. Encurralado enquanto batalhava para garantir que uma ponte permanecesse desobstruída, Yi preferiu atirar contra a própria cabeça a ser capturado pelo Guomindang – o que significaria tortura e, de qualquer forma, execução.

Jocelyn e McEwen têm dificuldade para estabelecer uma sintonia com um marco que ilustra toda a grandiosidade daquele evento histórico. A Longa Marcha durou mais de um ano de fome, doenças, carnificina. É o mito fundador da República Popular da China, mas só 4 mil homens – dos 80 mil iniciais – chegaram ao seu final.

Em 2002, quase 70 anos depois, o mundo era outro, havia uma paz relativa. Isso vai deixando a gente meio mole, com mais facilidade para criar bolhas nos pés e menos capacidade para entender certas coisas.

A história humana sobre a Terra é imponente, monumental, fascinante, mas quase nunca tem a ver com o que hoje entendemos por justiça. No futuro, a pandemia de Covid-19 certamente entrará para os livros de história, mas é possível que não exista espaço nesses relatos para toda a nossa dor. Talvez também não tivesse havido para Yi Dangping se tudo o que ele tivesse feito fosse passar os dias de pijama no sofá jogando pôquer online.

O problema de viver um grande momento histórico que não é assim tão grande é que ninguém exige de mim grandes sacrifícios ou uma tomada de decisão dramática. Tudo o que me pedem é cautela e prevenção e, se eu não puder agir de acordo diante dessas circunstâncias e garantir que um bom número de camaradas possa passar mais um tempo sob o sol, qual é exatamente o diabo da minha serventia neste mundo?

Tudo o que preciso fazer é esperar. É fácil. Não poderão me dar uma medalha por isso. No máximo, um post laudatório e constrangedor no Facebook.

Por outro lado, pode ser reconfortante pensar que a longa marcha da história humana não foi feita necessariamente por grandes nomes e extraordinários momentos de ruptura. Eles podem ter sido os solavancos que nos deram impulso, mas esses avanços foram basicamente sustentados por uma imensidão de zés-ninguéns – a turma que fazia o trabalho duro e entediante.

Há uma passagem especialmente bonita em Sapiens, do historiador israelense Yuval Noah Harari, que resume isso. Ela diz:

“Esses excedentes de alimentos confiscados alimentaram a política, a guerra, a arte, a filosofia. Construíram palácios, fortes, monumentos, templos. Até o fim da era moderna, mais de 90% dos humanos eram camponeses que levantavam todas as manhãs para trabalhar a terra com o suor da fronte. Os excedentes que produziam alimentavam a ínfima minorias das elites – reis, oficiais do governo, soldados, padres, artistas e pensadores –, que enchem os livros de história. A história é o que algumas poucas pessoas fizeram enquanto todas as outras estavam arando campos e carregando baldes de água”.

Ninguém merecerá uma vaga no panteão humano por passar as próximas semanas zerando a Netflix. Mas, por ora, esse é todo o trabalho que precisa ser feito. Digamos que vai ter que ser estímulo suficiente. 

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