A conquista

O vírus precisou de quatro ou cinco semanas para colonizar a minha cabeça. A parte de fora mesmo. Desembarcou em meu crânio como os personagens de um romance de Arthur C. Clarke um dia desembarcaram para explorar a lua.

Isso foi lá em abril. Isolado em minha casamata na zona norte da cidade, calculei que o cabelo que começava a ficar impraticável não valia uma ida ao cabeleireiro em circunstâncias pandêmicas. E também não valia o risco de eu mesmo tentar um corte convencional em frente ao espelho e – com minha reconhecida imperícia para atividades que exijam habilidades motoras finas – acabar enfiando uma tesoura na órbita ocular.

A máquina de barbear fez o trabalho em dez minutos. Precisei de pouco tempo para me habituar ao novo visual, muito mais prático e clean do que a revoltosa cabeleira anterior, que usava desde a adolescência. Minha imagem magrela, branquela e agora meio careca – não muito longe de um hooligan torcedor do Millwall – deve ser o que você vai ver saracoteando por aí quando tudo isso passar e eu voltar a poder saracotear por aí.

Uma marca definitiva.

Não fui único. Dois ou três amigos também ficaram impacientes e optaram pela radicalidade capilar, e aposto que teve quem tenha feito a mesma coisa na Jamaica, no Vietnã e na Eritréia. Não existem muitas alternativas quando o assunto é uma epidemia global: as maneiras de enfrentá-la são as mesmas no Barreirinha, no Batel, no Tanguá ou em uma ex-república soviética. Isolamento, máscaras e cuidadosa higiene funcionam em Pedro Juan Caballero ou na China moderna fundada por Mao.

O vírus é como um império, unificando territórios e culturas diversas sob um mesmo comando, colonizando, uniformizando. A conquista é suave, quase imperceptível, como foi muitas vezes antes na história: nem todos os impérios precisaram de espada e carnificina para triunfar.

Agora, nos Estados Unidos, no Japão e no Kuwait também há pessoas trabalhando 10 ou 12 horas por dia – e combatendo a neurastenia com uma quantidade de café e pó de guaraná suficiente para alterar o resultado de umas duas finais de Copa do Mundo – simplesmente porque de uma hora pra outra ficaram sem ter nada muito melhor pra fazer, mais ou menos como eu.

Na grande quantidade de tempo livre que ainda sobra e não é mais possível atirar fora enquanto lustramos balcões de bares e casas de chá com os cotovelos, elas ruminam interminavelmente culpas e rancores que pareciam enterrados, e lamentam não terem se empenhado antes no difícil e grandioso projeto de produzir uma versão melhor de si mesmas.

Em alguns dias, elas saem para rápidas idas ao mercado, lojas de conveniência e tomam um pouco de sol, esse imenso inferno de hidrogênio em fusão nuclear a 150 milhões de quilômetros de distância e que mesmo assim é imprescindível para combater nossos problemas de pele idiotas e autoimunes. (Deus, na improvável hipótese de existir, é uma espécie de poderoso palhaço cósmico.)

Elas agora hesitam em responder a mensagens que se acumulam no celular, e pensam que muitas vezes relações precisam de muito pouca pressão para se esboroar e por fim se liquefazer – e que no fundo, bem no fundo, não dão a mínima. O excesso de estímulos da cacofonia social terminou por perder todo o sentido que provavelmente nunca teve. O novo império não forçou nenhuma grande ruptura, mas lhes deu uma consciência brutal de sua solidão no mundo.

Pela TV, elas assistem às diferentes reações de seus concidadãos diante da conquista, ao desespero de muitos para negar a sua insuficiência diante do incontrolável avanço do dominador, como se de repente o mundo tivesse acordado em um filme de ficção científica ruim dos anos 70, toda a humanidade precisando se adaptar às veleidades de um povo alienígena.

E talvez na semana passada elas também tenham lido a última entrevista de Bob Dylan. E atentado para o momento da conversa com o repórter Douglas Brinkley, do New York Times, em que aflora o bonito conceito de “estoicismo sem rendição”. Não posso falar pelo camarada lá no Vietnã, mas eu decidi que essa é minha nova filosofia de vida.    

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