Ninguém se importa com a chuva no sétimo andar

Ele chegou mais cedo do trabalho, encontrou uma playlist do Bruce Springsteen no aplicativo do celular e se pôs a cozinhar. Pouco tempo depois, o céu se abriu num toró vertiginoso disposto a inundar o mundo. Ele abandonou por alguns instantes as cebolas, os pimentões e o meio quilo de patinho bovino cortado em pequenos cubos (como ela preferia) e foi até a janela admirar o aguaceiro. Uma senhora tempestade. Do sétimo andar, viu um relâmpago fantasmagórico cindir verticalmente a escuridão do horizonte, uma serpente elétrica e mitológica ascendendo aos céus. Ato contínuo, o estrondo do trovão fez as vidraças chacoalharem, e o gato, assustadiço, disparou pelo apartamento.

Ele checou o celular. O jornal dizia que 14 ruas do centro estavam alagadas. “A Visconde de Nacar virou um rio, como de costume”, reclamava um conhecido. No WhatsApp, uma foto mostrava a Vila Capanema, que mais parecia o açude de um pesque-pague. “Vamos soltar umas tilápias!”, gozava alguém.

Uma senhora tempestade, ele pensou.

Dois segundos depois, ela se arremessou porta adentro como uma pequena borrasca, o cabelo colado ao rosto, a roupa colada à pele, os ossos finos encharcados, um meio sorriso no rosto tiritando de frio. Encostou rapidamente os lábios nos dele e anunciou:

– Vou já pro banho! Tô morrendo de frio!

Começou a se livrar das roupas ali mesmo, no meio da sala – a blusa bordada para um lado, o jeans pesado de água para o outro, as meias escuras com estrelinhas atiradas em cima do sofá –, e rumou para o banheiro completamente pelada, aos saltinhos, abraçando a si mesma.

Ele juntou as roupas e levou as peças para a lavanderia. Na cozinha, experimentou o caldo e decidiu que o tempero estava ok. Serviu duas doses secas de Passport num copo americano – anotação mental: precisava de copos novos – e ligou a TV num telejornal qualquer. “Nesta quinta-feira, em Curitiba, choveu em duas horas o equivalente a 80% do previsto para todo o mês de fevereiro”, calculava o homem calvo atrás dos óculos.

Uma senhora tempestade, sem sombra de dúvida.

Ele encostou-se na parede, bebendo a goles regulares, e ficou fitando aquela pequena nebulosa de infinitesimais lâmpadas fluorescentes de plasma que formavam o homem atrás dos óculos. Do banheiro, ela gritou:

– Que cheiro é esse? Senti do elevador.

– Comida, oras – ele riu.

– Que tipo de comida, ô manezão?

– Picadinho.

– Oba! Eu tô morrendo de fome.

Ela saiu do banheiro já vestida com um moletom, a toalha na cabeça, as lentes substituídas pelos óculos, e – agora sim – lhe deu um beijo mais demorado. Sentiu no hálito dele o cheiro áspero do álcool.

– O que é isso?

– Encontrei uma garrafa no armário. Alguém deve ter esquecido aqui no fim de semana.

– Hum. Sei.

Ele enterrou o rosto no pescoço dela e sentiu o cheiro refrescante do pós-banho. Mordiscou-lhe a orelha e ficou na língua com o gosto de xampu. Meio rindo, ela se livrou daquela bobice e sumiu quarto adentro. Em segundos, ele ouviu o barulho do secador de cabelos. Serviu mais uma dose de Passport.

Depois, ela colocou a mesa com um conjunto americano estampado por talheres coloridos e voadores sem muito senso de proporção, presente da mãe. A TV dava um boletim extra por conta da chuva.

Na Sete de Setembro, as lojas haviam ficado cheias d’água. Na Westphalen, a pressão de uma galeria subterrânea fizera o asfalto esboroar, como um bolo excessivamente farináceo. Árvores haviam despencado em pelo menos seis pontos. Por toda a região central, um engarrafamento intransponível.

Ele se levantou e começou a recolher os pratos. O gato reapareceu, na expectativa por um naco de qualquer coisa. Ela acendeu um cigarro.

– Deixa a louça que eu lavo.

Ele passou rapidamente o espaço estreito da cozinha em revista, o fogão, a pia, o micro-ondas, a geladeira, e decidiu que a coisa não estava assim tão bagunçada.

– Dane-se. Amanhã a gente vê.

– Quer assistir alguma coisa? – ela perguntou, fazendo o cigarro chiar dentro de um copo com um fundo residual de Coca-Cola. – Eu baixei os novos episódios de True Detective.

– Acho que hoje eu não quero ver True Detective.

Ele mudou o canal da TV para um mesa-redonda esportiva. Ela escovou os dentes e decidiu trabalhar na cama.

– Eu tava ouvindo o rádio – ela disse, antes de sair dali. – Tavam dizendo pra amanhã o pessoal nem passar de carro nuns lugares, porque o Centro vai estar um inferno.

– E vai estar mesmo. Ele serviu mais uma dose de uísque e se debruçou à janela. Olhou para o poste de iluminação pública. Contra a luz amarelada, flagrou os primeiros pingos da chuva que recomeçava.

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