Lia – Capítulo 39

Você punha jornal dentro do sapato porque, primeiro, o sapato era maior do que o teu pé. Você dizia “teu pé” porque era assim que se falava na tua cidade. O jornal também, no entanto, ajudava a esquentar. Isolava. E na tua cidade era bem preciso se isolar. O frio era grande.

Você gostava daquele sapato. E lembra de ter usado por vários invernos. Com jornal, sem jornal. Um ou dois pares de meias. Daquelas meias que a tua mãe fazia de crochê, que ela nunca soube fazer tricô. Mas você lembra dela fazendo crochê numa velocidade que você levou anos, décadas, pra descobrir que não era normal… que não era zunindo daquele jeito que as pessoas faziam crochê.

E contando enquanto conversava. Falando animada e ao mesmo tempo mexendo os lábios enquanto te ouvia. Acompanhando os pontos.

Você gostava daquele sapato.

A meia-calça de lã, já nem tanto. Pinicava.

O vestido sim. Esse era bonitinho até. Pena não combinar com a japona azul enorme. Gigante mesmo. Nem com a maldita touca Joana-D’arc. Pinicava mais que a meia-calça, aquela touca feiosa… Você ficava toda empipocada. Mas e você que me saísse “no tempo” sem aquela Joana-D’Arc!

As roupas não eram boas.

Não serviam direito e não esquentavam.

Ninguém se vestia direito na tua cidade. Apesar do frio. Ninguém sabia se vestir pro frio. Era só um monte de roupa uma por cima da outra. Do teu vestidinho vermelho quase nada se via. Só a barra por baixo da japona e do casaco de crochê, marrom!, que era ainda mais comprido que ela.

Tinha geado.

Você saiu de casa crocando o gelo da grama com a sola do sapato forrado de jornal.

Agora era o meio da manhã. O sol já estava lá, mas o frio ainda era de cortar. De doer.

Mas você estava que quase nem percebia o vento que te dava nas bochechas quase bordô. A única coisa que te ocupava era aquela sensação estranhíssima de não estar na sala de aula. De ser a única aluna de fora da sala. De saber que a professora continuava lá passando a matéria, mas que você não estava ouvindo. De que aquele tempo fora da sala pertencia como que a uma outra realidade. A um outro tempo, todo seu. Só.

Você estava sozinha no colégio inteiro.

Andando.

Descendo a escada.

Saindo pelo pátio no vento gelado.

E com todo cuidado você ia carregando na mão o objeto, a razão de estar fora da sala durante aqueles minutos tão… tão lindos…?

De cabeça pra baixo, pra não fazer sujeira antes da hora.

Até chegar à lateral das salas de aula do ginásio. Uma casa de madeira que ficava do outro lado do pátio. Tábuas sobrepostas como telhas, como escamas. Mal pintadas. Desgastadas.

E você escolheu com cuidado o lugar onde ia bater o apagador.

E começou, enquanto o giz branco ia caindo na grama como neve. Enquanto parte dele se tornava pó fino que subia, como nuvem. O cheiro do giz. A sensação de que o apagador agora ia funcionar. Ia limpar tudo. Deixar o quadro negro todo negro, uma vez mais.

Graças a você.

Graças ao teu trabalho.

Porque foi ela que te escolheu. Você não precisou nem pedir!

Feliz aniversário, Lia.

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