Os antigos

Os antigos e o céu

Os antigos viam uma estrela e, a partir daquela observação, a olho nu, eram capazes de dizer quem eram, onde estavam e para onde deveriam ir. Acreditavam que as estrelas, tendo nascido para orientar a humanidade, guardavam dentro de si um conhecimento muito específico acerca do destino de cada um. Para acessá-lo, bastava ouvi-las à janela. Assim recomendava o soneto parnasiano. Para nós, porém, ainda vivos em 2019, as estrelas nem importam tanto. Prescindimos do céu, já o trazemos bordado na bandeira, e quando olhamos para cima, mesmo à noite, não vemos estrela nenhuma. Os antigos diriam que estamos desgovernados.

Os antigos e o poder

Os antigos não participavam das decisões dos poderosos. Nem sequer sabiam que lhes cabia esse direito, e até desconheciam o nome e os encargos dos que geriam suas vidas. Sabiam, contudo, o nome que Adão e seus colaboradores tinham dado às demais coisas do mundo: o leão, o cordeiro e o milhafre, o ipê, o pequi e a pitanga. E saber esses nomes por tê-los cunhado dava aos antigos, como a um poeta comum, um poder quase autoral sobre o universo nomeado. Hoje, desaprendendo as palavras, abrimos mão de tal vantagem. Decoramos o nome dos poderosos e os recitamos de boca cheia, da manhã à noite, e até durante o sono, na esperança de assim participarmos da canhestra redação de suas sentenças.

Os antigos e a morte

Os antigos morriam à noite, logo depois da janta, que era sempre sopa, pão, polenta, repolho, batata. Jantavam à luz de uma única vela, depois de um dia de trabalho igual a milhares de outros dias de trabalho, e que por serem iguais não mereciam a distinção de uma queixa ou de um elogio, e sim, no máximo, um agradecimento, pois haviam terminado da melhor maneira possível: com um prato de sopa quente sobre a mesa. Mas o dia acabava e vinha a noite, e com ela a janta e a morte, e quando terminavam aquele prato de sopa e o limpavam com um naco azedo de pão, os antigos se erguiam pedindo licença à mulher e aos filhos, e então morriam ainda fortes e de pé, a meio caminho do banheiro. Hoje não. Morremos sozinhos e sob intensa iluminação, entubados e de barriga vazia, as veias transbordando de remédio e mágoa, e mesmo em nossos velórios as velas são elétricas.

Os antigos e o fogo

Os antigos viviam ao redor do fogo. Nós nos apartamos dele. E nosso último pretexto para mantê-lo por perto, o tabagismo, este manso queimar e inalar de ervas que os poderosos decidem ser lícitas ou não, tem sido cassado pelos defensores de uma vida mais longa e produtiva para todos, fumantes e não fumantes. Pois a produtividade, hoje, é nossa estrela mais brilhante.

Os antigos e as florestas

Os antigos acreditavam que dentro de cada árvore havia um espírito aprisionado e, como esse espírito poderia ser o de alguém que um dia tivessem amado, dedicavam a vida ao desbravamento de temerárias florestas, sempre abertos aos chamados do amor por entre as sombras e a eventuais pedidos de resgate, que talvez partissem do coração de uma sequoia querida, de uma pedra cantante de rio ou de uma concha desocupada onde, anos atrás, um rei cristão teria reencarnado como verme. Hoje, como se sabe, essa dinâmica se inverteu, e são os vermes que reencarnam como reis cristãos.

Os antigos e os sonhos

Os antigos viam fantasmas apenas raramente. Em geral só os pressupunham, e quando entravam pela primeira vez numa casa ou num quarto de dormir, estremeciam, dizendo: Alguém morreu aqui. A frase, assombrada, nunca mais abandonaria aquele cômodo. Alguém morreu aqui. A própria enunciação de um sentimento íntimo, naquele tempo, se tornava um fantasma verbal, e os fantasmas, assim como as palavras e as frases, tinham o poder de ferir ou acariciar o corpo dos antigos. Tais espectros se acercavam de suas camas e os beijavam na testa, ou então sentavam sobre o peito dos adormecidos, provocando neles pesadelos que, não por acaso, eram muito parecidos com os nossos, pois é o pesadelo que ainda nos une: o dos antigos lhes dando notícia de um mundo semelhante ao de hoje, embora o nosso mundo, a eles, fosse inconcebível, e o deles, a nós, pareça incivilizado.

Os antigos e a tradição

Os antigos eram práticos. Atiravam em toda fera que inadvertidamente despontasse nas bordas da mata ao redor de suas aldeias, espreitando seus bens ou sua família, por cupidez ou curiosidade, assim como queimavam as bruxas e enforcavam os ladrões, os assassinos e os traidores da comunidade, dela isolando os enfermos e expulsando estranhos e divergentes. Hoje fazemos o mesmo, mas não por praticidade, pelo contrário. Atiramos, queimamos, enforcamos, isolamos e expulsamos em respeito à tradição.

Os antigos e as profundezas

Os antigos davam sete voltas ao mundo em busca de panelas de ouro que outros, mais antigos que eles, enterravam por entre as raízes de árvores especiais. Mas a verdade é que os antigos nunca acharam tesouro nenhum, apenas se contentavam em partir para procurá-los e depois contar maravilhas sobre tais expedições, tendo assim legado às gerações futuras a crença de que tais tesouros não só existiam como ainda estariam lá. É por isso que dinamitamos as montanhas, à caça de tesouros que ninguém jamais escondeu, fuçando o chão como porcos enfeitiçados. Vem daí talvez nossa fixação pelo subsolo, nossa tara pelas profundezas, pois se é certo que da terra brotam a flor e a trufa, é bem possível que debaixo dela o inferno dos antigos se avizinhe de nossas melhores jazidas de nióbio e petróleo.

Os antigos e a consciência

Os antigos tinham a consciência de que um dia também seriam antigos, e até ansiavam por isso, e nem sequer desconfiavam de que eram feitos de poeira estelar. Nós, que já sabemos de tudo, passamos a crer que talvez sejamos eternos.

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