Não vai sobrar nada

Caminhando entre as ruínas do Passeio Público, encontro um homenzinho que me chama a atenção. E não só por ostentar dois pequenos chifres na testa proeminente, coroando olhos muito vermelhos, mas por estar também acomodado no chão, mais precisamente na lama, enquanto ao seu lado há uma cadeira de plástico, branca e vazia. O homenzinho parece jovem, só não me arrisco a dizer que realmente o seja. Escorado entre as raízes de uma árvore que não conheço pelo nome, cruza as pernas de modo a manter no ar, balouçante, o pé peludo onde equilibra, com profunda displicência, um minúsculo chinelinho de dedo.

Ao seu redor tudo é caos. O lugar acabou de ser carpido e desbastado. São as reformas no parque. Havia ali uma grande cerca, adornada por trepadeiras. Ela foi removida. Limparam também o terreno, ao menos parcialmente, arrancando de lá touceiras e arvorezinhas mais delicadas, cobertas de cipós ou parasitas. Reviraram a terra, talvez preparando o solo para o replantio do gramado. E é por isso que, ao encontrar o homenzinho chifrudo refestelado no barro, ao lado de uma cadeira vaga, fantasio que talvez se trate de algum tipo de criatura mítica, desalojada de um tronco ou de uma gruta, após o desmatamento da área. Embora suas tatuagens, admito, pareçam sim bastante mundanas, e até mesmo malfeitas.

Não está totalmente ocioso. Na verdade, o homenzinho se dedica a um trabalho tão singelo quanto importante, revelador de uma generosidade ordinariamente humana. Retira de seu farnel uma porção de pães dormidos, muito secos, e os esfarela com as mãozinhas, jogando as migalhas para os passarinhos que, aos bandos, o rodeiam. Ao me ver, no entanto, suspende as atividades franciscanas e sorri, aliviado, como se encerrasse naquele momento uma longa espera. Acena para mim com injustificada intimidade, mas sem fazer menção de levantar. Me chama, inclusive, de amigo, e aquilo me põe alerta.

Em respeito às convenções da boa educação, me detenho para ouvi-lo, apesar de não dizer nada em resposta e de não me aproximar da árvore onde se escora. Precavido, permaneço parado onde estou, à disposição do destino ou do acaso, na calçada de pedrinhas portuguesas que me serve de trilha. Temerosos da minha presença, os passarinhos levantam voo.

Ei, amigo, me diz o homenzinho, que horas são? Eu checo o celular, afetando naturalidade, fingindo não reparar nem em seus olhos vermelhos, nem em seus chifres recém-implantados, e respondo com voz jovial: Meio-dia! Ele repete a informação, duvidando: Meio-dia? Eu confirmo: Meio-dia. O homenzinho, então, se concentra. Faz um cálculo ligeiro e, de repente, se tranquiliza: Achei que fosse mais tarde.

Eu sorrio, me despeço com a cabeça e volto a caminhar. É sábado e minha família me espera para o almoço. Mas ele não me libera, ainda não, e mais uma vez solicita o meu obséquio, me chamando não só de amigo, mas também de irmão. Eu paro e me volto para ele, o que foi agora? Ele sorri e me mostra a cadeira vazia ao seu lado: Não quer sentar?

Uma chuva de folhinhas de guapuruvu cai sobre nós, devagar, mas constantemente. As seriemas ganem na margem de lá do tanque. Uma borboleta morta, amarela, é arrastada pela brisa. Eu agradeço e digo que fica para a próxima. Ele lamenta, mas insiste: Ainda é cedo. Não, obrigado, eu declino. Mas ele é teimoso. Pede que, antes de partir, eu olhe um pouco à nossa volta. Montes de capim e entulho a serem recolhidos. O antigo restaurante derrubado. Pó. Caliça. A copa das árvores se despindo. As crianças gritando no parquinho. O rangido dos balanços e o raspar da ferrugem que os dissolve. Algumas buzinas numa rua próxima, uma manifestação qualquer, não entendo o que dizem no alto-falante. Eu olho, ouço, presto atenção, mas não sei como reagir. Espero que o homenzinho me dê uma dica. E então ele conclui, apontando o entorno: Não vai sobrar nada.

Pergunto se está se referindo às obras no Passeio Público. E o sujeito ri, coçando um dos chifres, não lembro se o esquerdo ou o direito: Não, não, falo de modo geral. Não vai sobrar nada.

Concordo, não vai sobrar nada, e mais uma vez me despeço. Ele volta a me oferecer a cadeira vaga, ela continuará ali, ao meu dispor. Eu volto a agradecer e a recusá-la. Ele me oferta também um de seus pãezinhos dormidos: Não quer um pão? Não, obrigado. Ele me adverte: Não vai sobrar nada. Eu lhe dou as costas. Ele volta a esfarelar os pães. Os passarinhos retornam ao chão. Alguns ratos também se aproximam, e se misturam às aves. Quanto a mim, me afasto, sem olhar para trás.

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