Coração de guizo

Nem sempre um cronista será capaz de dar àquilo que vê um sentido palpável. Comigo é comum acontecer. Há poucos dias, por exemplo, vi uma menina de três anos jogar sua boneca numa lixeira da praça Santos Andrade. Não sei por que ela se desfez do brinquedo, e nem por que razões aquele seu gesto, tão comovente quanto agressivo, parecia me pedir uma crônica. Só sei é que, a partir do momento em que a vi, não pude deixar de pensar nela.

Era uma menina de três anos, já disse. No máximo quatro. Sua boneca, feita de pano, era a cara da dona. Com isso, quero dizer que ela não se assemelhava a um bebê, mas a uma menininha. Ambas, menina e boneca, usavam um vestido rosa e traziam o cabelo castanho arranjado numa longa trança. A menina, discreta, fazia silêncio. A boneca não. Era do tipo que guarda dentro de si, na altura do peito, um guizo. E enquanto a outra a carregava no colo, seu coração soava como um pequeno sino, anunciando a passagem da dupla.

A menina, é claro, não estava só. Perseguia uma mulher, aos saltos. Era a mãe, muito jovem e bonita. Alguns homens, perfilados nos pontos de ônibus da praça, mexiam com ela grosseiramente. Habituada à estupidez masculina, a moça os ignorava, demonstrando pressa. Voava na frente da filha, ao mesmo tempo em que digitava algo no celular. De vez em quando se virava, decerto para ver se a filha ainda existia, se ainda estava lá, e então ordenava: Corre, guria, corre. Obediente, a filha corria e, assim, o guizo de sua boneca tocava mais depressa.

De repente, ao passar por uma lixeira, a menina parou. Olhou para as costas da mulher que se afastava, atarefada, e para a boneca em seus braços. Olhou também para os lados e, conforme adiantei no primeiro parágrafo, jogou o brinquedo no lixo, supondo que ninguém a visse. Em seguida disparou atrás da mãe que, até onde pude acompanhar, não percebeu os movimentos da filha, nem deu pela falta da boneca. Sumiram de vista, interditas, na esquina da rua inglesa.

Não querendo chamar a atenção, resisti à vontade de espiar o interior daquela lata de lixo. Então simplesmente passei a imaginá-lo, assim como a boneca de pano lá dentro, no escuro, com seu coração de guizo silenciado. Talvez ela estivesse caída, de ponta-cabeça. Talvez estivesse deitada de bruços, ou de costas. Ou comodamente sentada, na expectativa de alguma mudança, uma melhora no estado geral das coisas. Ou pelo menos no cheiro circundante. Torci por ela e por seu destino. E desejei que até o final da tarde ninguém atirasse ali nada que a soterrasse, ferisse ou encharcasse, inutilizando-a como brinquedo ou personagem.

Determinado a caçar analogias que de algum modo se adequassem àquela narrativa de separação, busquei conferir ao descarte da boneca uma significação útil ou verossímil. Procurei paralelos. Primeiro pensei no soldadinho de chumbo de Andersen. Na jornada do herói aprisionado na barriga de um peixe, ou no ermitão em sua caverna. Depois pensei na ambiguidade das ressurreições, num guizo reverberando à noite, sozinho, no fundo daquela lixeira, na aventura bíblica de Jonas, que permaneceu na baleia por três dias de contrição, indigerível, à espera de uma segunda chance, até ser enfim vomitado de volta à praia dos vivos. Salvo, coube ao profeta a triste missão de anunciar ao mundo a destruição de Nínive.

Mas não. Nem tudo o que o cronista vê e ouve servirá facilmente a uma ideia autoral, particular, preconcebida. Nem toda metáfora será satisfatória, suficiente ou positiva. Nem toda referência alcançará os leitores. Tudo é relativo e volátil. A própria imagem de um soldadinho de chumbo, hoje, pode nos remeter a épocas ainda menos alvissareiras, a anos mais sombrios, funestos prognósticos políticos. E mesmo Nínive, por mais que Jonas a tenha condenado, acabou poupada. No fim, Deus se apiedou de suas cento e vinte mil almas, alegando serem ingênuas ou confusas demais para tamanho castigo, incapazes de diferenciar sua mão esquerda da direita.

Sim, às vezes tudo que um cronista pode dizer é que viu e ouviu alguma coisa. Uma menininha jogando fora a sua boneca, e fazendo calar um coração de guizo. Que esta crônica, portanto, seja sobre o mistério daquele coração, e que soe como um pequeno sino.

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