Considerações sobre a esperança

No balneário, em maio, reinam as baixas expectativas. A alta temporada já se foi e o calor se despede de suas criaturas. Ninguém mais espera pela chegada massiva dos turistas e do dinheiro. No entanto, quando as grandes perspectivas deixam de vigorar, abre-se espaço para algumas poucas, mas retumbantes esperanças. Vive-se, então, na torcida pelos pequenos acontecimentos, e é nessa arquibancada que o cronista se acomoda.

Nos sábados pela manhã, é mais fácil captar esse desejo difuso nas calçadas. Em especial quando caminhamos a pé, ao largo dos comércios recém-abertos. Centenas de boias previamente infladas balançam à porta das lojinhas. A esperança é de que as crianças brotem das esquinas e venham comprá-las já em trajes de banho, a caminho do mar. São tubarões, orcas, golfinhos. Pererecas e lagostas caricatas. Tudo em promoção. Os baldinhos de brinquedo, as cadeiras dobráveis, as pranchas de isopor. Misturam-se a uma multidão de pálidos manequins, vestindo maiôs e biquínis, pijaminhas de meia-estação, sungas cavadas. Na cidade, porém, há mais manequins do que gente viva.

Sim, sempre acreditei que a esperança é uma forma menos agressiva de loucura. Tolerável, pode-se viver bem com ela. Prescinde de medicação pesada. E alguém, afinal, sempre precisará de um par de havaianas. Por que então não abrir a loja? Sempre haverá quem esteja à procura de um apartamento mais em conta, de uma casa com piscina, ou com pelo menos um quintal de bom tamanho, que comporte uma. Há lojas, aliás, que só vendem piscinas, e é sempre um espanto vê-las de pé, enfileiradas, aqueles imensos tanques de fibra de vidro sobre nós, mais azuis que o céu do litoral paranaense.

Lembram arapucas armadas. Parecem nos dizer: entrai com esperança, saí satisfeitos, voltai sempre. Uma variante positiva da advertência afixada por Dante no guichê do inferno. Porque o paraíso há de ser outra coisa. Quem sabe esta miragem onde a esperança de vender o estoque se una à de comprar algo ideal, útil, necessário. A esperança de honrar nossos esforços, fazendo valer nosso salário. Mas não. Não há mais grana, nem clientes, nem céu azul. É maio e está chovendo.

Está chovendo para que subsista também a esperança de que em algum momento, de preferência antes do meio-dia, a chuva pare.

Talvez pare, eu torço. Ainda é cedo. Homens de meia-idade, como eu, ou então mais velhos, caminham pela rua, debaixo da garoa. Somos a maioria a esta hora, sob estas condições. Só não posso falar das esperanças de cada um, não sou adivinho. E nem há nada que seja meramente “relatável” em seus rostos, apenas uma sugestão de solidão, para o bem ou para o mal. Vão à praia, veem o mar e voltam, como se para certificar-se de que o oceano ainda está lá, à disposição de um eventual impulso de afogamento.

Um casal perdido foge à regra e passa por mim de mãos dadas, fingindo que não há chuva. Não querem admitir que apostaram errado, que o programa de sábado não era esse, não há romantismo viável sob este teto baixo de nuvens. Mas a mulher tem ainda uma esperança, a de ver o sol até o fim da tarde de domingo, e é isso o que ela diz ao homem que a acompanha. Que aquela seria a sua última chance de se manterem bronzeados antes do inverno. Precisarão de muita fé.

Prefiro a esperança dos surfistas. Uma esperança desassombrada, que não recusa a intempérie, que vem em ondas, sustentável. A propósito, a característica definidora de um surfista será sempre a sua esperança de que haja ondas. E também a de domar não apenas a onda perfeita, mas a onda infinita. Ou então uma onda que realmente se transforme em outra coisa, em algo que evolua, que transcenda a si próprio e à sua absurda condição de erguer-se aqui, tão lindamente, apenas para morrer ali, conforme o esperado, num redemoinho de areia e espuma.

Mas é compreensível que os surfistas nem pensem nisso. Que apenas saibam lidar, como poucos, com as baixas expectativas de maio. Não precisam de sol e nem de calor, e são os únicos a entrar sem hesitações na água. Eles e os pescadores que retornam, em seus barcos, de algum lugar distante e indefinido, talvez de sonho, onde provavelmente era noite e havia estrelas. Vejo os barcos atracando, mas não os pássaros que costumavam cortejá-los. Os pássaros já estão em outra.

Descubro que alguém instalou um enorme e vistoso letreiro no calçadão da Praia Central. Nove letras de fôrma maiúsculas, vazadas e coloridas, dispostas contra a linha do mar: o G vermelho, o U amarelo, o A azul, o R branco, o A vermelho, o T marrom, o U rosa, o B azul, o A verde. Quem os pôs ali decerto tinha a esperança de que viessem a embelezar o cenário, imaginando que tal combinação de cores e sinais gráficos exerceria sobre a paisagem algum tipo mágico de poder, capaz de emprestar alegria ao horizonte embaçado do balneário. De fato, o letreiro nos vende a ideia de um verão familiar e exuberante, e a cada um de nós cabe a decisão de comprá-la ou não. De minha parte, penso que a maresia já tem algo novo que comer até o próximo verão.

E já que falei em comida, há os restaurantes. Todos se aprontando para o almoço, ruidosos. São milhares de talheres a nosso dispor. Os garçons arrumam as mesas com esmero, casando sobre cada toalha um vasinho de flores artificiais e um porta-guardanapos espelhado. Quantos desses papeizinhos sairão hoje de suas caixas? Talvez nenhum. Mas, se vierem fregueses aos bandos, talvez apenas bebam. E é preciso gelar a cerveja. Talvez também comam, talvez gostem da comida, talvez voltem. A esperança maior é esta, a esperança de agradar.

Os cães de rua dormem na proximidade dos restaurantes, debaixo de marquises, a salvo da chuva, à espera dos restos de logo mais. Embolam-se, pois amam o calor uns dos outros. Já passearam pela praia ao amanhecer, sem esperança alguma, apenas se aproveitando desta liberdade de viver num lugar naturalmente bonito e que, apesar de tudo, ainda nos convida ao passeio.

Passeemos. Porque até o calçadão alimenta essa esperança. Torce para que o palmilhemos antes que o mar o devore por completo, e para que a municipalidade continue a reconstruí-lo pedra a pedra, temporada após temporada, até o contingenciamento final de todas as verbas. Contra todos os prognósticos, o calçadão resiste. E é por ele que avança agora este restrito grupo de jovens vestidos para um verão que já se esgotou. Quatro caras legais, quase meninos. Usam bonés, bermudas, regatas, chinelos. Como se não estivesse meio frio, como se não ventasse, nem chovesse. Só que não o fazem por terem a esperança de que ainda venha até nós um implausível calor temporão, mas porque acreditam, antes, na possibilidade de sentirem calor simplesmente por haverem escolhido estas roupas. Apostam no convencimento do próprio corpo.

A esperança que nutrem é outra, embora ela também vagueie pelo campo do misticismo. Sonham encontrar, naquele mesmo calçadão desbarrancado, um grupo de moças que se vista mais ou menos como eles, e com intenções semelhantes às suas, evidenciando assim crerem todos nos mesmos sortilégios. Só serão felizes entre si, os brasileiros, enquanto temerem as mesmas bruxas.

E finalmente, contrariando tudo o que prenunciam tantas marolas matinais de esperança, há esta longa sequência de quiosques fechados. Nada ali se move em direção ao futuro. As pilhas de mesas e cadeiras sujas, os freezers acorrentados, os cartazes anunciando batidas, caipiras, tigelas de açaí, água de coco, festas há muito extintas. Os guarda-sóis amarelos ensimesmados. A lama dos parquinhos desertos. Cada parquinho, um poço de areia movediça. Pelo seu vórtice escoam velhos escorregadores, cavalinhos de madeira, casinhas de boneca. A salvação de tudo isso dependerá de modalidades ainda mais complexas de esperança. Pois não basta que a chuva pare e as crianças cheguem: o parquinho continuará imundo por muito tempo até que se possa voltar a brincar nele.

Somente os banheiros públicos parecem preferir o abandono em que se encontram. O que faz todo o sentido. Ninguém aqui está celebrando nada, ninguém está bebendo ou comendo à farta, ninguém veio ao mar prestar seus tributos de filho agradecido. Não, ninguém virá às nossas latrinas. Mesmo assim, o cheiro dos excrementos ao redor delas permanece forte, e cada vez mais acentuado, o que de certo modo configura uma espécie de mistério escatológico. A esperança, nesse caso utópica, é a de que ninguém jamais volte a sentir a necessidade de aliviar-se.

Mas aí já estaríamos na esfera dos grandes acontecimentos.

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