A exúvia e o sonho

Às vezes, ao escrever uma crônica, tenho a impressão de estar narrando um sonho a um amigo. Em geral isso acontece já a partir da primeira frase do texto. Por exemplo: Minhas filhas e eu estávamos na Rua Carlos Eduardo Leão. Sei que não há nada de especialmente onírico nisso, mas a sensação de sonho, por algum motivo, está lá, e, sendo assim, me deixo levar por ela. Talvez por isso tantos leitores me perguntem se minhas crônicas são mesmo reais, se aconteceram ou não.

Bem, nesse caso, minhas filhas e eu de fato estávamos na Rua Carlos Eduardo Leão. Era um fim de tarde e fazia calor, então escolhemos, como de costume, passear por ali, onde é mais fresco e agradável. Trata-se de um belo caminho de sombra, que minha caçula gosta de chamar de Rua da Floresta. Não lembro agora se a descíamos, em direção ao Colégio Estadual, ou se a subíamos, rumo ao Cemitério Luterano. Lembro sim de termos visto o mesmo bando barulhento de jacus que, pouco antes do anoitecer, sempre se recolhe para dormir no interior do cemitério. Voltam para casa aos gritos, mas acredito que, do lado de lá do muro, pousem respeitosamente entre as lápides alemãs. Aliás, adoro o nome científico dessas aves: Penelope obscura. Quem sabe lá dentro não passem a noite à espera de algum Ulisses, ansiosas pelo fim de nossas brevíssimas odisseias?

Mas realmente não lembro, eu dizia, se subíamos ou descíamos a Rua da Floresta. E isso agora tanto faz: o sentido daquele nosso passeio não é relevante para os fins desta crônica, assim como o sentido de um sonho prefere se manter, pelo menos em princípio, na obscuridade do inconsciente. Lembro que fazia calor, que o dia acabava, que os jacus rouquejavam sobre os túmulos do Alto da Glória, que uma saracura passou por nós, em pânico, e que dois pica-paus nos observavam, aristocráticos, do gramado aparado de uma mansão silenciosa. Lembro também, ou acho que lembro, que falávamos então sobre os gambás que, desde o ano passado, começamos a ver com mais assiduidade na Rua da Floresta. Foram três no total, mas todos eles, coincidentemente, já estavam mortos quando os encontramos. Dois na calçada e um no asfalto.

Algo que minhas filhas logo perceberam é que os gambás mortos se assemelham muito entre si, mais que os gambás vivos. E que eles parecem morrer sempre na mesma posição, deitados de lado, as pernas ainda na intenção de uma corrida, o rabo meio enrolado em espiral, já saudoso de suas antigas funções preênseis. Este gambá é mais gordo, aquele é mais magro, mas, mortos, todos parecem ter sido interrompidos em meio a um mesmo movimento de prazer ou de carência, como se, ao morrer, estivessem indo daqui até ali apenas para satisfazer um desejo urgente de mudança.

Um dia, infelizmente, aquele desejo, tão simples, deixou de se concretizar. E toda aquela conversa sobre gambás com as crianças talvez tenha servido somente para reforçar em mim, agora, esta impressão de estar narrando um sonho a um amigo. A lembrança do desejo frustrado dos gambás, assim como a dos jacus latindo no Cemitério Luterano, feito corvos num poema gótico, e a da saracura que de tão assustada quase se atirou num canteiro de coroas-de-cristo, e a do casal de pica-paus relaxando na grama, talvez pensando que a liberdade, afinal, fosse só aquela desnecessidade temporária de penetrar, com o bico e a alma, a aspereza das árvores.

E, claro, havia também as exúvias. Já estavam ali há semanas, centenas de exúvias agarradas à casca grossa das tipuanas e à casca refinada dos plátanos. Às vezes, durante uma chuva de verão, batia um vento mais forte e elas se desprendiam de seus troncos, aos punhados, para ir se acumulando no meio-fio, na grade dos bueiros. Mesmo sem ser especialista, sem saber se isso é mesmo verdade, sempre digo às minhas filhas que algumas cigarras podem viver até dezessete anos debaixo da terra, em estado larvar. E as meninas sempre se boquiabrem diante dessa informação, acho que para serem gentis comigo, o pai que já não cansa de se repetir.

Portanto, falei mais uma vez sobre a longevidade das cigarras, enquanto pensava que se aquilo fosse mesmo real, que se aquelas exúvias que agora tremulavam ao vento na Rua da Floresta tivessem dezessete anos completos, elas teriam sido forjadas num mundo relativamente melhor que o de hoje. E que quando enfim se libertaram do chão e voaram para a luz, ensaiando o seu réquiem, devem ter ficado perplexas com a cidade conturbada que encontraram, e que dificilmente as terá ouvido cantar.

Esta crônica, porém, não era para ser sobre as exúvias. Era para ser sobre um passeio que fiz, certo fim de tarde, com minhas filhas. E sobre a surpresa que nos acometeu quando, ao subirmos ou descermos a Carlos Eduardo Leão, vimos uma família de saguis, meia dúzia deles, correndo sobre o muro da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

Os macacos, de cara, tentaram fugir da gente, alarmados com a reação festiva das meninas. Achei inclusive que já vinham fugindo de alguma coisa, uma ameaça maior e anterior, e que pareciam bater em retirada. Há um grande prédio residencial sendo construído na rua, muitas árvores já saíram de cena, e suponho que as que restaram já não lhes pareçam tão resguardadas ou acolhedoras. Mas para onde fugiria uma turma de macacos no Centro de Curitiba?

Viraram a esquina na General Carneiro, e minhas filhas viraram atrás. Para não os perder de vista, botei a menorzinha na garupa, e corremos. Não adiantou muito. A macacada sumiu nas franjas do cenário, eram todos tão miúdos, tão leves. Só um deles, de repente, se deteve. Estacou sobre uma coluna do muro, a uma distância curta, mas segura, e olhou para nós, curiosa. Sim, era uma fêmea e trazia dois filhotes nas costas. Alguma coisa em nós a intrigara. Paramos, minhas filhas e eu, diante dela e de suas crias, e ficamos, os seis, nos encarando em silêncio. Não passou um carro, não bateu uma brisa, nenhum jacu gritou no cemitério. E assim um bom tempo se escoou, sereno, ao nosso redor, um tempo de sonho, eu diria, o suficiente para que uma ponte provisória se erguesse entre nós.

Na verdade, foi rápido. Um grupo tagarela de operários saiu do prédio em construção, na esquina. Cantavam a quase alegria de mais um expediente que se encerrava. Nos distraímos com eles e, quando voltamos a olhar para o muro, os saguis já tinham desaparecido.

Anos atrás escrevi, noutra crônica, sobre uma criança que, ao ver um pavão de cauda aberta no Passeio Público, perguntava a seus pais, atônita, se aquele pavão era “de verdade”. Pois semana passada, no mesmo Passeio Público, aquele mesmo pavão abriu novamente a sua cauda, e outra criança, soando meio entediada, comentou com uma senhora que lhe carregava no colo: Olha, vó, parece um pavão.

E acho que era sobre esse pavão que parecia ser um pavão que eu queria escrever. Acredito que ele, caso compreendesse os resmungos humanos, se ofenderia com tal comentário. Pois é certo que mesmo um pavão aprisionado continuará, sempre, sendo um pavão real, verdadeiro. Assim como um macaco acuado na cidade grande continuará sendo um macaco. E quem sabe até mesmo o gambá morto no asfalto, impedido de sonhar, de se mover e de desejar qualquer coisa, continue a ser um gambá, ou ao menos a sua memória.   

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