A crônica não mata – Parte 9

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A rua está quieta, poucos carros vão e vêm pela Luiz Leão, ao largo do Passeio Público, e seus motores, ao longe, reproduzem o som de ondas que suavemente se quebram numa praia escura. Debaixo de três cobertas durmo e sonho com um oceano particular. Enquanto isso um homem avança sozinho pela Faivre, treze andares abaixo de mim. Não o vejo, sequer o concebo na precariedade do meu sono, mas seus gritos acabam me acordando. De início não compreendo o que diz. Sinto a garganta inflamada e consulto o celular: três e meia, um grau negativo. Levanto, vou à janela, abro uma fresta na cortina. Localizo o homem abraçado ao esqueleto de um cinamomo, quase na esquina da Amintas. Apuro o ouvido. Ele grita: Benzetacil! Benzetacil! Como se implorasse por um copo d’água no deserto.

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Tomo um copo d’água e me deito. Com sorte voltarei a dormir e a sonhar com o oceano. Mas não. Escuto novas vozes. Um casal arrebatado, em algum lugar do prédio, assiste aos jogos olímpicos. Também gritam, torcendo por alguém, ou contra alguém, e o aplaudem ou vaiam, e celebram sua vitória ou sua derrota. Debaixo de minhas três cobertas ouço os assobios e os palavrões com que saúdam os competidores. Tento adivinhar, pelo intervalo entre seus apupos, a modalidade esportiva que estariam acompanhando. Vôlei? Tênis? Handebol? Tento adivinhar se estão felizes ou desapontados, mas é difícil. De repente começam a brigar. Não é possível. Um cachorro, de latido agudo, se interpõe entre eles, insuportável. Desisto e levanto — vou tomar um Cataflam dispersível.

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Encho um segundo copo d’água e nele diluo o anti-inflamatório. Ligo a tevê e a sintonizo nas competições de atletismo. Abaixo o volume. Não quero ouvir discursos laudatórios, prognósticos otimistas, narrativas de superação, análises técnicas. Gosto de ver o rosto dos atletas sem saber nada a respeito deles. Seus recordes, seus dramas, suas batalhas. Para mim basta apreciar o modo como desanuviam o cenho ao se descobrirem no telão do estádio. O salto da angústia à distensão. Alongam-se, acenam e sorriem para as câmeras. Às vezes nos encaram com a expressão de um tirano, um deus pagão, um tímido efebo. Às vezes me lembram vestais numeradas. Gosto de estudar suas reações ao final de cada classificatória. Socam o ar, ajoelham-se, persignam-se, dançam, choram. As mãos na cabeça ou na cintura. Mas gosto principalmente do desfile e da diversidade de têmperas e compleições, gestos e semblantes que os jogos nos proporcionam. No arco das sobrancelhas do nadador polonês, reencontro um amigo que já morreu. Nos lábios mordidos pela ginasta alemã, a ansiedade de uma esquecida namoradinha. No nariz afilado da corredora russa, a austeridade da ex-professora de piano. O sorriso daquele velocista nigeriano, registro, é o mesmo de um antigo vizinho, de quem volta e meia ainda sinto saudade. Todos estes atletas, eu já os conheci, aos pedaços, e ainda os tenho comigo. Os joelhos de um, o pescoço tatuado de outra, o jeito daquela de prender os cabelos, a perícia deste ao amarrar os tênis. Cada músculo de cada competidor, em ação ou em repouso, o desenho apressado de seus movimentos no ar ou debaixo d’água, tudo isso eu reconheço e aprecio, no meu corpo ou no corpo daqueles que estão ou já estiveram — um dia, uma noite, um minuto — ao meu lado.

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Ao cronista convém medalhar nos jogos mnemônicos. Lembrando que a memória, conforme uma vez me disse Ignácio de Loyola Brandão, também imagina.

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Volto para a cama, o remédio logo fará efeito. Quatro e meia, um grau negativo, sensação de menos dois. Debaixo de minhas três cobertas me desvio do sono ao lembrar que não foi aquela a primeira vez que ouvi alguém gritar benzetacil na rua, à noite. Quando vivia na Boca Maldita, vinte anos atrás, morava ao lado do Diretório Acadêmico Nilo Cairo. Ali se promoviam festas absolutamente bárbaras. Certa madrugada saí ao terraço, irritado com o barulho que subia da rua, e vi um grupo de estudantes de medicina no meio da Ébano Pereira. Eram seis ou sete rapazes. Todos dançavam em roda e cantavam em coro, como num ritual de feitiçaria: Benzetacil! Benzetacil! Um deles, no centro da roda, abaixou a calça e ofereceu as nádegas rebolantes aos colegas, que nelas fingiram aplicar, sensualmente, uma dose cavalar de penicilina. Lembro, rio, até me comovo. E o inesperado da recordação me leva a pensar no que estariam fazendo hoje aqueles moços, duas décadas mais velhos, e quantos deles estariam acordados neste exato momento, quem sabe se de plantão, na linha de frente do combate ao coronavírus.

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Durmo. Sonho com o Mar Jônico. Com os jogos gregos da antiguidade, quando ainda se praticava o pancrácio, uma luta em que tudo valia, exceto morder e arrancar os olhos do adversário. Sonho com seus campeões sendo premiados após a pancadaria. Nus, feridos, sorridentes, cobertos de sangue. Em Olímpia recebiam uma coroa trançada com folhas de oliveira. Em Delfos, uma coroa de louros. Em Corinto, uma de ramos de pinheiro. E em Nemeia (ah, em Nemeia, que linda homenagem!), uma guirlanda de aipos selvagens!

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Dormimos enquanto do outro lado do mundo centenas de atletas nos representam. Nosso corpo descansa enquanto o deles corre e pula, sofre e vibra, golpeia e é golpeado. Não precisamos nos preocupar com isso. Não precisamos fazer nada além de dormir e sonhar. Pela manhã acordaremos e ligaremos a tevê, querendo saber quantas medalhas conquistamos. Ouviremos então nossos atletas diante das câmeras, falando de seus sonhos. Do quanto é importante sonhar e acreditar no que se sonha. Fora do sonho, dirão eles, ganhar ou perder, nada importa.

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Plutarco conta que o rei Midas, da Frígia, certa vez se perdeu no deserto com sua delegação. Imploravam por algo que pudessem beber. A Terra, então, se compadeceu deles e fez brotar do solo uma fonte milagrosa. Não de água, mas de ouro.

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