A crônica não mata – Parte 7

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Chego cedo à Praça Ouvidor Pardinho. A fila já dobra esquinas. Espero com ânimo e paciência, temendo somente a possibilidade de uma garoa. O frio é tolerável. Abro um livro, mas não consigo me concentrar. Examino de longe a vasta tenda branca, armada a centenas de metros de mim. No final do tenebroso ano de 1934, esta mesma praça foi totalmente coberta pela lona do grande Circo Sarrasani, fundado em Dresden, no início do século 20, pelo palhaço Hans Stosch. Daquele circo se dizia que era o maior e mais deslumbrante do planeta, que uma dúzia de elefantes ocupava seu picadeiro ao mesmo tempo, que 30 mil lâmpadas coloridas o iluminavam, e que sua passagem pelo Brasil seria parte de um programa de propaganda da Alemanha nazista. Fosse como fosse, tudo naquele cenário era fantasia, ordem, opulência, expectativa. Tentei me transportar mentalmente da fila da vacina para aquela outra, em 1934, repleta de crianças curitibanas excitadas pela perspectiva de em poucos minutos estarem diante de doze elefantes em formação circular, de pé sobre as patas traseiras e com as trombas em riste, prenunciando aos sul-americanos um destino melhor, um futuro de obediência, disciplina e sonho. Pois aquele futuro, vocês sabem, já chegou e apodreceu, e aquelas crianças já estão todas dormindo.

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Uma mulher interrompe meu devaneio. Chacoalha, perto do meu ouvido, um pote cheio de canetas Bic. Diz apenas duas palavras: “Dois real”. Como eu trouxe minha própria caneta, agradeço e recuso a oferta. Ela é uma mulher gorda, veste inúmeras roupas sobrepostas que aumentam em muito a circunferência de seu corpo. Traz na cabeça um gorro inca, no rosto uma máscara lasseada, ao redor do pescoço curto um cachecol de lã. Usa luvas. Tudo que vejo, de sua figura, são os olhos azuis e a pele vermelha, ressecada, ao redor deles. Impossível adivinhar sua idade. Inútil imaginar como se sente e o que pensa. Ela não é uma vendedora, não nasceu para o comércio. Não sorri, não pechincha, não se interessa. Apenas dá um passo para longe de mim, dirigindo-se à próxima pessoa na fila. Chacoalha o pote de canetas: “Dois real”.

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Não, um paladino nunca descansa. Já nos aproximamos da tenda branca quando um homem, algumas posições à minha frente, pede uma caneta emprestada a uma das mulheres que organizam a fila. Preenche sua ficha. Devolve a caneta à moça e, incomodado, não resiste à tentação de uma denúncia. “Lá atrás”, diz ele, abraçando-se e batendo os pés para espantar o frio. “Tem uma mulher vendendo canetas por dois reais.” A moça nem olha para o bom cidadão: “Ah, sim, obrigada, a gente sabe”. Mas o homem, exaurido pelos rigores da própria dignidade, se escandaliza: “E vocês não vão fazer nada?”.

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Em abril de 1908, durante uma epidemia de varíola no Rio de Janeiro, Olavo Bilac escrevia, em sua coluna carioca no Correio Paulistano: “Há menos de quatro anos, a vacina de Jenner era o pior dos venenos e a vacinação era o maior dos crimes; (…) transmitia a tuberculose, a sífilis, a lepra, era preparada com o sangue de ratos pestosos; era uma sânie infecta que apodrecia o organismo do inoculado, e quem se atrevia a contrariar essa opinião arriscava-se a ser linchado em praça pública”.

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Bilac se referia à revolta da vacina, de 1904, em parte causada por uma lei que previa a vacinação obrigatória de todos os brasileiros. Oportunistas se aproveitaram do medo e da ignorância populares para promover o caos. Houve um quebra-quebra, uma rebelião militar, tiroteios, prisões e mortes. Tentou-se um golpe de estado, que logo se frustrou. O cronista conta que os que se opunham à vacina defendiam, então, um princípio de “incompreensível liberdade”. Consideravam a campanha de vacinação um “escandaloso atentado à liberdade individual”. A lei foi revogada. Cerca de 3,5 mil cariocas morreram de varíola até o fim daquele ano. Em 1908, as vítimas chegaram a 6,5 mil.

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No dia 13 de novembro de 1904, comentando o motim dos negacionistas e se queixando do mau uso que entre nós já se fazia do incipiente e muito restrito direito ao voto, Bilac lembrou, na Gazeta de Notícias, de uma anedota referente a Péricles, o estadista ateniense. Consta que, ainda no começo de sua carreira política, o rapaz teria aparecido na ágora em situação vexaminosa, às lagrimas, descabelado, fora de controle, dando tapas no próprio rosto. Perguntaram a ele o que se passava, se havia perdido o juízo, ao que Péricles, de acordo com Bilac, teria respondido: “Tenho vergonha de mim mesmo”. O famoso democrata tornava público o seu arrependimento por haver votado, num pleito anterior, num homem que durante o seu mandato se mostrara totalmente incapaz de governar o que quer que fosse. E era a si mesmo que Péricles castigava por sua tolice eleitoral.

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Não encontrei a fonte de onde Bilac teria extraído essa história sobre a crise de culpa de Péricles. Mas a tomemos por real. Não tenho dúvidas acerca do poder educativo e simbólico de tal ato. E imagino o quão proveitoso, o quão libertador seria se cada um dos eleitores do fascista que finge nos presidir, arrependido ou não, saísse às ruas do país, em desmascarada e expiatória manifestação, esbofeteando a si próprio. Mirem-se, pois, no exemplo de Péricles.

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Já falei muito do que é grotesco. Chega. Agora quero falar do que é aprazível. E deixar aqui um agradecimento ao proprietário, ou à proprietária, da bicicleta vermelha que volta e meia encontro estacionada debaixo de um arbusto florido de bicos-de-papagaio, no pátio da Reitoria. Para quem ainda não ligou o nome à planta, há quem também a chame de espírito-santo, divino, flor-de-santo-antônio ou flor-de-sangue. Ela floresce no inverno e parece, apenas parece, ter flores vermelhas. Na verdade, a flor-de-sangue conta com imensas brácteas vermelhas, semelhantes a pétalas, que nos remetem a uma estrela de fogo, de cujo núcleo se projetam minúsculas florzinhas amarelas. É lindo de ver. Por isso, ao ciclista ou à ciclista que ali, debaixo daquelas brácteas rubras, estaciona a sua bicicleta vermelha, eu digo, mais uma vez, obrigado.

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A flor-de-sangue é uma euforbiácea. Seu nome científico é Euphorbia pulcherrima. Euphorbia seria uma referência ao médico Euforbo, que trabalhava na corte do (assim o dizem) sábio rei Juba, da Mauritânia, genro de Cleópatra e Marco Antônio. Pulquérrima, vocês sabem, é um superlativo absoluto bem extravagante, mas preciso. Significa “muito pulcra”. Ou seja, bonita demais.

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A Cleópatra de Shakespeare, logo no início da peça que protagoniza, quer saber de seu amante o quanto ele a ama. Antônio desconversa: “É mendigo todo amor que pode ser medido”. Cleópatra aceita o argumento, e eu também. Aceitemos todos esse amor manjado e sem medidas. E nos dediquemos, a partir de agora e acima de tudo, a impor limites apenas ao ódio, à patifaria e à imbecilidade.


Para ir além

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