A crônica não mata – Parte 6

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Depois de quinze meses num apartamento conseguimos levar as crianças a uma chácara, em Palmitalzinho. Foram dias ótimos, apesar do frio e da umidade. Numa manhã de tempo especialmente ruim, minha caçula subiu ao terraço para dali observar a chuva na superfície do lago em frente à casa. Foi quando um menino saiu da mata. Pequeno e encapuzado, calçava botas de borracha e brandia um galho seco como se fosse uma espada. Investigava o rastro que minha família, na tarde anterior, havia deixado na trilha enlameada. Minha filha o chamou com um grito amigável. Ele levou um susto, mas logo se recompôs. Acenaram um para o outro e apresentaram-se cortesmente, nome e idade. Seguiu-se uma conversa educada, embora o menino parecesse ansioso, interrompido em meio a uma missão vital, cavaleiresca. O que você faz aí embaixo, na chuva, perguntou a menina. Ele inflou o peito, corajoso: “Estou caçando monstros”, respondeu, indicando nossas pegadas.

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Ouvindo o diálogo entre as crianças, insensível, acabei rindo alto. Minha filha se ofendeu. Abandonou o terraço e entrou em casa sem se despedir. O menino, por sua vez, correu de volta para a mata. Arrependido, me lembrei da cena do balcão em Romeu e Julieta. Sozinho no escuro, o jovem herói trágico espera sua amada assomar à janela. De repente diz a si mesmo, nem me recordo por que razão: “Só ri de uma cicatriz aquele que nunca foi ferido”.

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Há muito que eu sentia falta de um terraço. Aproveito para tirar o atraso. Levanto da cama antes do amanhecer, passo o café, visto minhas roupas mais quentes e saio. Seis graus. O terraço se mescla à copa cerrada do arvoredo. A escuridão é densa, não vejo nada. Ouço o riacho desaguar no tanque das carpas. Pássaros invisíveis anunciando a manhã. A comunicação entre os galos da vizinhança. Nas árvores mais próximas de mim, adivinho a presença de não sei que animais silenciosos, talvez de médio porte. Ouço o estalar dos galhos em que se equilibram, em meio à folhagem úmida. Parecem pesados, pouco sutis, não devem ser macacos. Tomo meu café e aguardo. Uma xícara, duas, três, e o céu começa a avermelhar. Já distingo alguns vultos ao meu redor, cada vez mais agitados. Quando o dia clareia, finalmente os identifico: são urubus, uma dúzia deles. Me avaliam sem grande interesse, afinal ainda estou vivo. Batem as asas e decolam, um a um. Agora são só pontinhos pretos na distância, logo desaparecerão entre as nuvens. Meu terraço, para eles, não passa de um rodapé.

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Quem aprovou a mudança foram minhas gatas pretas. Felinas de estirpe urbana, a princípio se sublevaram contra os sons e os cheiros da mata. Passaram um dia inteiro debaixo da cama, sob protestos. Depois perceberam que na nova casa a oferta de mariposas, aranhas e besouros era generosa e se esbaldaram na caçada. Nunca ganhei tantos presentes na vida, e de tão rica variedade. Carapaças metálicas, pernas peludas, asas de todas as formas e cores. Um cronista que conte com a boa companhia de um gato, anotei, jamais precisará se esfalfar por aí, em busca de suas borboletinhas amarelas.  

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Impossível pernoitar numa casa de campo em plena pandemia sem pensar no Decamerão de Bocaccio. Inevitável não se sentir, num misto de vergonha e alívio, um pouco como Pampineia, a mulher que liderou um grupo privilegiado de amigos para fora de Florença, durante a peste de 1348. Em nome da sobrevivência, abriram mão de seus escrúpulos, invadindo uma propriedade abandonada na zona rural. Não precisavam ir mais longe. Aqui há um jardim, explicava Pampineia. Aqui há flores, frutas e prados, vegetação verde e frondosa, aqui há um palácio no alto da montanha, e da montanha se avistam paragens ainda mais aprazíveis. Aqui, dizia ela, há balcões, salas amplas e quartos confortáveis, comida fresca e poços de água pura, vinhos preciosos na adega, ar limpo, céu estrelado, promessas de futuro. Aqui, concluía Pampineia, é obrigatório viver festivamente.

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Uma epidemia de peste arrasou a cidade de Éfeso no século II d.C. Quem nos conta é Filóstrato, em seu livro sobre a vida e a época do milagreiro Apolônio de Tiana. De acordo com o cronista ateniense, os efésios, não podendo mais conter o morticínio, finalmente apelaram àquele poderoso guru, que em matéria de prestígio e celebridade só rivalizava com Jesus Cristo. Apolônio, então, guiou o povo até a porta do teatro local, onde um mendigo cego mordiscava um pão dormido. Caso queiram se livrar da peste, disse o sábio à multidão, apedrejem este homem infeliz, despossuído tanto de bens quanto de defesas. De início houve certa hesitação. Um breve debate sobre ética e lógica. Mas bastou que o primeiro efésio atirasse a primeira pedra para que todos os outros o imitassem. Filóstrato relata que, ao fim do linchamento, a vítima estava tão desfigurada que não mais se assemelhava a uma criatura humana. Era só uma massa disforme, de sangue e ossos, que o povo logo reconheceu como sendo o cadáver de um demônio, um monstro infiltrado entre eles, enfim desmascarado.

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A crônica não mata, mas guarda a memória dos mortos e dos matadores. Quanto ao mendigo trucidado, não registramos o seu nome. Sabemos somente que, no lugar em que o mataram, erigiu-se mais tarde uma estátua em homenagem a Héracles, o padroeiro da cidade. Não sei dizer se a epidemia em Éfeso se extinguiu após o apedrejamento orquestrado por Apolônio de Tiana. Mas os efésios, é certo, se acalmaram. Ao menos tinham tomado uma providência.

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O flâneur vai à floresta e faz uma descoberta. Dentro da mata, o Brasil não existe.


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