A crônica não mata – parte 3

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Minha avó materna morreu em julho passado, três meses antes do seu centésimo primeiro aniversário. Quando dei a notícia a minhas filhas, elas reagiram como costumam reagir as crianças diante da morte. Houve um susto, uma breve consternação, quase mimética, e por fim o alheamento total. Antes de dormir, porém, minha caçula voltou ao assunto, como se buscasse consolar o homem que a punha na cama: “Ela era muito velha, pai, estava na hora. Tinha mil anos! Nem lembrava o meu nome!”.

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No dia seguinte, bem cedo, a menina já se distraía jogando Minecraft. Seu avatar passeava por um campo aberto, muito verde. Com uma pá, tocou dois blocos de grama que de pronto mudaram de cor, assumindo uma aparência de terra revolvida. Acrescentou ao arranjo, na vertical, um pedra retangular que só então percebi se tratar de uma lápide. Me perguntou como se escrevia bisa. Soletrei: B, I, S, A. Ela concluiu a inscrição com alguma dificuldade. Em seguida, às margens do túmulo, plantou dúzias de margaridas brancas, um tributo florido ao nome da falecida.

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Preso em seu apartamento, o cronista se vê condenado a flanar por suas memórias, tornando-se mais pessoal e, por isso, talvez menos interessante. Como n’A Ronda dos Prisioneiros, de Doré e Van Gogh, ele anda em círculos, múltiplo de si mesmo, olhando para as próprias costas.

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No final da década de 80, filiei-me à União da Juventude Comunista. Eu era um adolescente idealista e passional, mas sem nenhum talento para a luta político-partidária. Disperso, sempre que faltava a uma reunião era procurado em casa, por telefone, por uma mulher de voz calorosa chamada Carmen. Ela queria saber por que eu andava tão distante. Conversávamos como velhos amigos. Não cheguei a conhecê-la pessoalmente, mas logo dotei-a de um rosto, um corpo, um jeito cigano de se mover. Até hoje não li a novela de Mérimée e, na época, ainda não tinha ouvido a ópera bizetiana. Quando falava com Carmen, eu pensava na dançarina de flamenco Laura del Sol, estrela do filme de Carlos Saura a que tantas vezes assisti na Cinemateca Guido Viaro. Carmen era um nome que dançava, um nome vermelho.

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Sempre achei que, de todos os nomes que um país poderia ter, Brasil era de longe o mais bonito. Morar no Brasil, ser brasileiro, me envaidecia. Era um país com nome de árvore, ibirapitanga, um nome tintorial, quase acintoso, cor de brasa acesa.

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Num rodapé de Sérgio Buarque de Holanda garimpei a informação de que o nome Brasil pode ter sido emprestado de antigos mitos celtas acerca de uma ilha paradisíaca no Oceano Atlântico. Tal terra fabulosa, coberta de árvores das quais se extrairia um precioso corante avermelhado, chamava-se O’Brasil. Sobre ela, no século 19, o irlandês Gerald Griffin compôs um poema simples e interessante. Não sou poeta nem tradutor, mas arrisco aqui uma de suas estrofes:

Do mar que escava as rochas onde os homens vivem
Uma terra emergiu sombria, conforme dizem;
Julgaram ser um lugar de paz, ensolarado,
E o chamaram de O’Brasil, a ilha dos abençoados;
Ano após ano, na linha azul do oceano,
Vinha à tona aquele espectro escuro,
Sob nuvens douradas, cativante,
Como se fosse o Éden, só que bem distante!

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Na utopia que nos precedeu, somente as árvores sangravam. No país que sucedeu a utopia, tudo sangra — gente, bicho, planta.

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Adolescente, eu adorava Maiakovski. Numa antiga antologia que ainda guardo comigo, li que o cozinheiro Isidoro, amigo do jovem poeta, subiu no fogão e dançou descalço sobre a chapa quente, assim que soube do assassinato do general Alikhanov, o Pacificador da Geórgia. Aquilo me impressionou, cheguei a duvidar do relato. Que tipo de alegria seria aquele, capaz de provocar tamanho acesso de loucura? Hoje, embora eu nunca tenha vivido emoção semelhante à de Isidoro, já posso dizer que compreendo suas motivações.

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Muito se tem falado a respeito do amor e do ódio. Falemos um pouco mais de amor. Para a Carmen de Bizet, ele era um “passarinho rebelde” que não se deixava engaiolar. Para a nossa Carmen, também ibérica, era um esfomeado tico-tico, refestelando-se no fubá dos outros.

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Por muito tempo os cronistas brasileiros cevaram os seus pássaros. A própria crônica lhes servia de viveiro elegante, uma gaiola ornamentada onde exibir o canto e a plumagem da sua literatura. Os cronistas do nosso século, por sua vez, terão que se haver com um outro tipo de animal, nu, selvagem e desarticulado, uma criatura que no Brasil, com alguma sorte, só se poderá aprisionar em jaulas bem robustas: o desejo de matar.

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A crônica, porém, não mata. Só deseja. E espera.

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Na faculdade de jornalismo tivemos um colega abertamente nazista. Filho de alemães, uma década mais velho que o resto da turma, seu sonho era atingir os oitenta anos, idade que, por insondáveis razões ideológicas, lhe parecia santificada. Certa manhã, o rapaz invadiu a pista de atletismo da PUC e, enrolado numa jaqueta de couro, atacou um ninho de quero-queros, raptando um filhote. Logo depois, levou o passarinho ao bar em frente à universidade, onde bebíamos nossa cerveja diária. Pedimos a ele que devolvesse o quero-quero a seus pais, no que não fomos atendidos. O sequestrador, inclusive, informou que já tinha batizado seu refém: ele se chamava Heinrich e seria o seu “fiel cão de guarda”. Alegamos que o pássaro acabaria morrendo de fome e estresse. Nosso colega, então, comprou uma esfirra. Dela arrancou pequenos pedaços, com que deu de comer ao passarinho, enfiando-os bico abaixo, com brutalidade e confiança. Não demorou, é claro, para que Heinrich morresse sufocado diante do assombro de todos nós. Seu corpinho foi jogado numa lixeira da Rua Imaculada Conceição. Anos mais tarde, recém-formado, nosso colega nazista também morreria, vítima de leucemia, sem realizar seu sonho de envelhecimento.

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Bem-aventurados os que nunca precisaram de cães de guarda.

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Vivo com duas gatas pretas. Uma delas me ama perdidamente. A outra apenas simpatiza comigo. Não posso reclamar. E nem ao menos dizer que as amo. Não é amor o que sinto por elas. O amor é algo que reservo somente ao gênero humano, um sentimento ambíguo que sempre me vem eivado de uma carga mais ou menos incômoda de angústia. Não. O que sinto por minhas gatas é algo mais raro que o amor, e quem sabe mais puro. É ternura.

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Numa entrevista que Vinícius de Moraes concedeu a Clarice Lispector, há um trecho de que sempre me recordo. O poeta falava de seu pai, de sua mãe e de sua música quando, de repente, interrompeu-se. O silêncio pairou entre eles por um ou dois segundos. E então Vinícius disse a Clarice: “Tenho tanta ternura pela sua mão queimada…”

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Em 1913, Maiakovski escreveu um poema que se tornou muito conhecido entre nós. É aquele em que se supõe a existência de um homem feliz em alguma parte do Brasil. Até hoje, ao que saibamos, essa hipótese não foi perfeitamente demonstrada. Mas se tal homem existiu, se por um milagre ainda estiver vivo e continuar sorrindo, ou se tiver descendentes que porventura tenham herdado uma porção de sua felicidade, é urgente que lhes façamos um apelo: apresentem-se!


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