A crônica não mata – Parte 17

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Na infância eu morava numa rua sem asfalto, na parte mais alta de uma ladeira. Até hoje ela não é asfaltada, e é lá que meus pais ainda moram. Sempre que chovia, uma enxurrada barrenta rolava rua abaixo, feito um rio de corredeira. Eu passava muito tempo, então, postado à janela da sala, olhando para aquele rio (minha casa também não tinha muros). Depois, quando a chuva parava, eu percorria a rua inteira, admirando os novos sulcos que a água havia aberto na lama. Tudo ficava diferente: o relevo do chão, as cores da terra revirada, a posição das pedrinhas que se deslocavam. A cada chuva, eu me dizia, meu mundo se redesenhava.

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Hoje vejo as chuvas de um décimo terceiro andar. Não há rio algum por aqui. E sempre que o vento sul nos traz alguma tempestade, a janela da minha biblioteca se mostra incapaz de detê-la. A água escorre do canto de suas esquadrias até a minha bancada de trabalho. É um mistério. Já chamei três empresas especializadas em janelas e ninguém soube me dizer onde está o problema. Aprendi, portanto, a conviver com ele. Se é verdade o que escreveu Borges, que o paraíso é uma espécie de biblioteca, o meu vive sob constante ameaça. A cada noite, quando os meteorologistas anunciam chuvas, sou obrigado a esvaziar minha bancada antes de dormir. Notebook, cadernos, livros, impressora, empilho tudo no chão. E se já está chovendo, forro a bancada com toalhas velhas, para que a água não corra livremente, alcançando as prateleiras. Por isso toda manhã, antes de trabalhar, preciso reerguer minha tenda. Não como o faria um cigano, um nômade, um andarilho. Mas como um feirante, que a cada dia é obrigado a reorganizar e expor ao público a fortuna de suas frutas.

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Mas há, sim, coisas de que gosto quando chove aqui no Centro e estou deitado em minha cama, no escuro. O som dos pneus rodando no asfalto, por exemplo. Não me peçam para descrevê-lo, é inútil tentar. Se tentasse, eu talvez dissesse que esse som é como o de um beijo, um beijo que durasse quadras, metros, quilômetros, o som de duas bocas que estivessem sempre se unindo e descolando, simultaneamente, só que sem nunca se unirem ou descolarem em definitivo. Estão vendo? Tentei descrevê-lo e fracassei.

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Também gosto do brilho dos postes na áspera granulação do asfalto molhado. Imagino a chuva ladrilhando as ruas com as tais pedrinhas de brilhante da canção de ninar. É bonito. Há inclusive quem fique à janela, como eu, esperando o amor passar. Mas são poucos.

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Numa noite de novembro, logo após a chuva, ouvi pancadas lá embaixo, na rua. Levantei e fui à janela. Na Conselheiro Araújo, um homem, aparentemente jovem, socava com violência as chapas de acrílico do ponto de ônibus diante do Círculo Militar. Temi que quebrasse as mãos ou os dedos. Bateu tanto que começou a gritar de dor, o que não o impediu de continuar batendo. Seu principal alvo era o painel publicitário do abrigo, que emanava uma linda luz verde, tão forte que me impedia de ler, a distância, o que ela mesma proclamava. Uma moto vinha passando, e aquele homem de repente correu para o meio da rua. Jogou-se diante do veículo, que brecou para evitar um acidente. O motoqueiro tentou manobrar, mas não teve espaço nem tempo. O homem o atacou, tomando-lhe algo que estava pendurado na garupa da moto. De longe me pareceu um capacete extra, branco. Assustado ou prudente, o motoqueiro não buscou reaver o objeto roubado. Desvencilhou-se de seu agressor e fugiu. Já o homem voltou a depredar o ponto de ônibus, agora usando o capacete em vez dos punhos. Finalmente cansou e foi embora, mancando, talvez ferido, resmungando em voz alta. Só então apanhei os binóculos e os direcionei para o painel verde luminoso. Nele estava escrito: NÃO DESANIME #FiqueBem.

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Há décadas não relia O Horla, de Guy de Maupassant, e a releitura que dele fiz há alguns dias serviu para reforçar minha simpatia juvenil por esse conto. Gostaria, no entanto, de reafirmar o quanto ainda me impressiona o fato de Maupassant, não sei com que propósito, ter feito esse vampiro tropical e invisível chegar a França via Sena, a bordo de “uma soberba embarcação de três mastros brasileira, toda branca, admiravelmente limpa e luzente”. Sim, o monstro é nosso. E a certa altura da história, o narrador, já bastante perturbado, lê no jornal que o Horla estaria causando, no Rio e em São Paulo, uma terrível “epidemia de loucura”, que fazia a população agir não mais como gente, mas como “gado humano”. Transcrevo aqui outro pequeno trecho da tradução de Amilcar Bettega: “O Horla vai fazer com o homem o que fizemos com o boi e o cavalo: sua coisa, seu servidor, seu alimento, pelo simples poder de sua vontade”.

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Todo brasileiro traz dentro de si uma floresta que, com o letárgico passar dos anos, vai se deixando carbonizar.

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Subo a Rua da Floresta com minha caçula, a caminho da escola. Ela me chama a atenção para a passagem de um senhor que vem cambaleando pela Maria Clara, num sentido perpendicular ao nosso: Olha, pai, que velhinho elegante, de gravatinha! Chegando mais perto, porém, notamos que a tal gravata é somente uma máscara descartável embolada no colarinho de uma camisa bastante encardida. O velho vem mal das pernas, escorando-se com a mão direita no muro do Cemitério Luterano. Com a esquerda segura, entre os dedos grossos, um cigarro que, a julgar pelo comprimento da brasa, há muito ele não leva à boca. Bêbado, diz uma ou duas coisas numa língua primitiva, soando irritado, e então desaba na calçada (sem, contudo, soltar o cigarro). Grita um palavrão. A brasa cai, mas não se apaga. Minha filha me pergunta se devemos ou não ajudar o homem. Digo a ela que é melhor irmos embora, o cara que se vire. A menina hesita, mas apoia minha decisão. Ele já está grande demais pra precisar da minha ajuda, explico. Debochada como de costume, ela concorda comigo: Grande mesmo, pai. Bem maior que você.

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Na João Gualberto, minha filha me informa: Se eu fosse pra Hogwarts, eu seria da Casa da Grifinória. Eu me interesso: É mesmo? E sua irmã? Também, a menina responde. E sua mãe? Também, ela repete. E eu? Aí minha filha titubeia. Para, pondera, reflete. Coça o queixo sob a máscara de urso-panda. Investiga meus olhos. Franze a testa. Balança as marias-chiquinhas. E finalmente dá seu veredito: Você seria da Lufa-Lufa. Tomo aquela deliberação como um grande elogio e, por isso, agradeço.

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A mãe sobe a João Gualberto com seus dois meninos, uniformizados. Estão atrasados para a aula. O dia abafado, ainda vai chover, a ladeira puxada, quem não cansa? De trás de uma banquinha de revistas surge um rapaz, morador de rua, carregando algo que, pela solenidade de seus modos, mais parece uma oferenda. Moça, ele diz. Ela se detém, oi? Toma, é pros meninos. E oferece a eles um chocotone recém-aberto. A mãe fica perplexa. Os meninos engordam o olho. Eu refreio a marcha a fim de testemunhar a conversa. O rapaz aponta para um amigo, deitado na grama ali perto, debaixo de uma árvore. É um presente nosso, revela ele, contente, ganhamos muita comida. De fato, a cena lembra um caloroso piquenique. A mãe agradece e sorri: Obrigada, mas não é necessário. Os meninos se angustiam com a recusa. E o rapaz reitera: Não é questão de necessidade, temos bastante comida, nem gostamos de chocotone, as crianças é que gostam. Constrangida, a mãe não sabe o que fazer. Não quer ofender um mendigo, e muito menos dois, seria um horror, um crime, um pecado. Seus filhos querem comer o chocotone, mas ela não tem coragem de aceitá-lo, não há como! O debate entre eles se prolonga, e eu acabo me afastando, tenho que ir trabalhar, não posso esperar para sempre por uma definição dessa mulher, ora, tenho mais o que fazer. Quem ela pensa que é? Por que não pega logo esse chocotone? Ou por que, então, não se afasta do rapaz sem lhe dar satisfação alguma? O que será isso que a faz ficar ali, conversando com um mendigo acerca de um bolo que ela não quer levar para casa, enquanto seus filhos passam vontade e raiva e, ao mesmo tempo, se atrasam para a aula?

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Perto do Passeio Público vejo uma barraquinha de churros recheados. Na verdade, é apenas um carro com a mala aberta. O pessoal faz fila atrás dele, querendo comprar o doce. Em meio à clientela, destaca-se um bando de estudantes do ensino médio. Trata-se de uma gangue gótica. Todos vestem o uniforme do mesmo colégio, mas estão também maquiados. Usam batom e sombra pretos, cabelos desfiados e longos, brincos em forma de cruz, unhas pintadas de roxo. Todos parecem muito tristes e encurvados, à espera de seus churros de doce-de-leite. Sim, o mundo é desigual e canalha, mas a juventude sempre saberá reciclar a sua sutilíssima beleza.

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