A crônica não mata – Parte 16

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Esquina da Maria Clara com a Carlos Eduardo Leão. Educadas, duas senhoras me abordam: Somos evangelistas, não queremos tomar o seu tempo, apenas alertá-lo a respeito do Deus Mãe, o senhor já ouviu falar? Digo que não, e elas passam a discorrer sobre os sábios de Alexandria, e os inúmeros dilemas que marcaram a edição da Septuaginta, e antigas questões de gênero envolvendo o Espírito Santo em pessoa. Desconfio estar num sonho. Peço licença, digo que estou com pressa, elas me abençoam e fujo Carlos Eduardo abaixo. Àquela hora a ruazinha está fresca e deserta. Na metade da quadra encontro uma jabuticabeira carregada, o chão acarpetado de frutinhas. Paro debaixo da árvore, abaixo a máscara e me demoro por ali, chupando jabuticabas. Em cada caroço engolido, sinto a presença de Deus.

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Esquina da Padre Antônio com a Agostinho de Leão. Rente ao muro do Estadual, um menino de três anos faz xixi num pé de araucária. Ele e a árvore têm a mesma altura. Um casal de quero-queros observa a cena, cercando a criança a uma distância prudente. A mãe do menino monta guarda. Quando me vê, esquece os pássaros e aponta para o filho: Olha pra ele, moço, ainda não comeu hoje, já é quase duas da tarde, ele vai morrer se não comer nada. Olho para o piazinho. De tanto urinar na terra que rodeia a araucária, ele acaba por desentocar uma minhoca. Compra comida pra ele, moço, me pede a mãe, não deixa ele morrer. Digo à mulher que não tenho dinheiro, e a culpa me obriga a lhe mostrar a carteira vazia. Ela fecha a cara, não insiste. E diz esperar que Deus, de algum modo, me pague pela ajuda que não prestei. Orgulhoso, o menino mostra a minhoca para a mãe. A família de quero-queros não passará fome.

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Na Doutor Faivre, bem em frente à Fesp. Uma moça não muito bonita, mas inegavelmente sensual, pede que me junte a ela à sombra de uma cerejeira. Faz calor, descanse um pouco, meu bem. Diminuo o passo, agradeço o convite, mas não pretendo parar. Ela abre um tupperware: Compra um brigadeirão, querido? Respondo que acabei de almoçar, obrigado, mas ela não desiste, propõe que eu compre o doce agora para comê-lo depois, o essencial é comprar e comer, não importa quando, o importante é render-se à vendedora, abrir a carteira e fechar negócio. Concordo, mas a verdade é que não tenho dinheiro, digo isso a ela e até lhe peço desculpas, como se minha falta de recursos pudesse ofendê-la. Ela sorri e diz que aceita pix. Eu digo que estou sem crédito no celular. Ela avança: Bota crédito, moço. Eu rio: Botar crédito pra fazer um pix e comprar um brigadeirão que eu nem quero comer? Mas ela também ri: O brigadeirão é o de menos, querido, quem liga pro brigadeirão? O importante é a gente se entender. É o que Deus espera dos homens.

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Entro no Nacional da Rua XV. Doutor, vai comprar leite? Olho para a moça à porta do supermercado. Ela torna a perguntar, como se eu não a tivesse ouvido: Vai comprar leite, doutor? Não, não vou, respondo. Compra, ela suplica, compra e aproveita pra comprar um litro pra mim também, meu filho está ali na esquina, vendendo bala no sinal. Ela não deve ter vinte anos, calculo. O filho tem a idade da minha caçula. Parecem irmãos. Ou compra um litro de leite ou compra um pacotinho de bala, continua ela, é um real cada. Concordo em comprar o litro para ela, e a moça, percebendo uma brecha em minha frieza, aposta alto: Quem compra um compra dois, doutor. Concordo, pode deixar, comprarei dois litros. Ela agradece, Deus te abençoe, e então aproveita para me pedir também um pacote de vinas, o que me custaria? Não sei, minto, talvez me falte dinheiro. Ela me oferece, em troca, dois pacotinhos de bala. Eu topo, mas dispenso as balas. Qual o problema das balas, doutor? É bala boa. Digo que não gosto de bala, mas tudo bem, compro dois litros de leite, um pacote de vinas e dois de balas. Deus te abençoe, doutor. A bala é boa, adoça a vida. Leva três.

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General Carneiro, em frente ao HC. Minha mãe está doente, moço. Lamento, o que ela tem? E eu sei lá o que ela tem, não entendo papo de médico, não sou como o senhor, que estudou e sabe das coisas, nem sei repetir nome de doença. Irritada, a mulher me mostra um papelzinho amassado: O senhor consegue ler isso aqui, é letra de gente, por acaso? Faço um esforço, mas nada feito, não decifro uma palavra sequer. Talvez algum farmacêutico possa ajudar, sugiro a ela, você já foi à farmácia? Ela então me convida a acompanhá-la até a Panvel da esquina. O senhor pode pagar, moço, eu estou sem trabalho, vai que esse remédio é caro? Peço desculpas, digo que não tenho dinheiro, e ela pergunta se não tenho cartão. Tenho cartão, admito, mas não tenho dinheiro nem tempo, me perdoe, estou atrasado pra um compromisso. Ela se enfeza. O compromisso do senhor é mais importante que a vida da minha mãe? Eu digo que não, mas que preciso buscar minhas filhas na escola. Ela retrocede, fecha os olhos, diz que não vai me incomodar mais. Deseja que minhas meninas vivam muito, e com muita saúde, e que Deus as proteja, e que um dia eu envelheça e elas possam cuidar de mim.

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Na Padre Camargo, pouco antes do jogo entre Coxa e Operário. As ruas estão tomadas por camelôs, torcedores e automóveis. Um homem me acena de longe, corre em minha direção. Manca de uma perna, demora a chegar, a máscara no queixo. Estou cuidando, doutor. Cuidando de quê? Ao se dar conta de que não sabe de que carro saí, ele hesita. Cuidando aqui da rua, eu e Deus, improvisa. Resolvo facilitar o diálogo e digo que não tenho carro. Não se preocupe comigo, estou a pé. Ele me sonda, desconfiado: Vai no jogo, patrão? Digo que não. Vai na novena? Não, estou só de passagem. O homem, então, resolve arriscar: Veio puxar carro? Rio e digo que moro na vizinhança, estou fazendo uma caminhada, aproveitando o fim de tarde, tenho lá cara de ladrão? Ele ri e me diz que tem mais de cinquenta anos, embora não aparente. Em toda a minha vida, sentencia, nunca conheci alguém que não tivesse cara de ladrão.

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Na Marechal me puxam pelo braço. Venha ver, moço, a TV de 32 polegadas está em promoção. Gosta de futebol? Prefere Netflix? Joga videogame? Sente só, moço, a potência dessa caixinha de som, é pequena, mas tamanho é documento? O verão vem aí, a pandemia acaba antes do natal. Experimente esse sofá, deite nesse colchão. Com todo o respeito, o moço é casado? E por que não usa aliança? Todos os celulares em doze vezes, não perca a chance, faça o nosso cartão, não demora nada, tem filhos? Na XV me puxam pelo braço. Compro ouro, compro joias, compro cabelos, examino seus olhos, é de graça, leve uma flor pra namorada. Compra alfajor, tio, estou reabilitado, estou trabalhando, só que isso é hoje, tio, saúde e serviço eu tenho hoje, o futuro a Deus pertence, a gente se esforça, mas depende do apoio dos outros cristãos. Na Tiradentes me puxam pelo braço. Dá uma olhada nesse relógio, maluco, não é roubado não, é de família, era do meu avô, eu nunca tive pai, minha mãe é que precisou vender, ela tem que pagar a operação dos olhos, meu irmão tem paralisia cerebral, você é tão bem-apessoado, como é que não usa relógio? Na Carlos Cavalcanti com a Rua Inglesa, várias senhoras tomam sol. Vamos, moço? Não, obrigado. Vamos? Estou com pressa, hoje não. Então passa na volta. Vou pensar. Vamos? Não tenho dinheiro. Não tem problema, aceito pix, menino, mas também aceito uma caixa de moranguinho, você que sabe, tem pra vender ali na feirinha do Passeio, tem maquininha de cartão; e pacote de bolacha, aceito também, doce ou salgada, você compra ali na padoca, é pertinho; e mais o pacote de café, não esquece, treze reais o quilo, fechou? Eu pareço confuso, a negociação é complexa, a lista de itens vai se alongando. A mulher percebe que não foi clara. E explica melhor: Veja bem, não é uma coisa ou outra, são as três juntas, o café, a bolacha e o moranguinho. Ou isso, ou pix, ou grana viva.

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No Passeio Público um homem me aborda durante a travessia de uma ponte. Carrega um triângulo velho, oxidado. Dez reais, compadre, é quanto vale o show. Paga dez e escolhe a música. Pago cinco e digo para ele cantar a que preferir. A sua favorita. Ele agradece, limpa a garganta, fecha os olhos. Começa a soar o triângulo. Não sabe tocar. Também não sabe cantar. Mas canta e toca. Não reconheço a música. Fala de liberdade, de amor, de Deus e da natureza. Fala de uma cidade que há muito ninguém visita. De uma pobreza que não existe mais, de misérias idílicas e obsoletas. De uma mãe que ficou para trás, que envelheceu na saudade da prole dispersa. De um pai que morreu antes de ver o filho ficar rico e famoso. Pergunto quem compôs aquela canção e o homem diz que foi ele mesmo, e até estranha a minha pergunta, achou que eu o conhecesse de antemão, fiz muito sucesso anos atrás, não me reconhece? Eu digo que não, e me desculpo por aquele lapso, sou muito distraído, não entendo nada de música. Ele balança a cabeça e lamenta por mim, já que o dom para a música, todos sabem, é uma bênção divina. Nem todo mundo tem a sorte de ser abençoado.

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Volto da quitanda, um cacho de bananas na sacola transparente. Na Amintas um homem acocorado me interpela: Tu tem uma penca, não é justo me dar uma banana? Eu dou. Ele reclama, a banana é pequena demais. Me dá duas de uma vez! Eu dou e ele, em silêncio, as guarda numa mochila. Concluída a transação, aceno com a cabeça, digo bom-dia e ele, de repente, explode: Não espere que eu te agradeça! Só devo graças a Deus!

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Na Faivre, entre a Agostinho e a Conselheiro, um guardador de carros se acomoda sobre um paralelepípedo. Está sempre ali, sentado, debaixo de uma ameixeira-amarela. Estamos no fim da época de ameixas, e ele chupa as últimas frutas da temporada. A caminho da escola passamos por ele, minha caçula e eu. Ele cospe um caroço de ameixa e diz a ela: Estude, guriazinha. Estude pra não crescer e virar guardadora de carros. Ela se mostra intrigada. Afinal, o trabalho daquele homem não lhe parece tão ruim. Sentar à sombra de uma árvore, comer frutas frescas, conversar ao ar livre. Por isso pergunta ao guardador se ele não gosta do que faz. O guardador pensa um pouco, morde uma ameixa e responde que não é questão de gostar. Gostar ou não gostar de uma coisa, diz o homem, não muda nada. E cospe outro caroço.

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Passo com a menina em frente a um boteco. Na porta, um sujeito alegre, de seus sessenta anos, copo de conhaque na mão, sai à luz da rua, simpático, decidido a nos comunicar qualquer coisa. Com a voz enrolada, ergue um brinde à minha menina: Viva! Salve a princesinha do Alto da Glória! Ela, por sua vez, não reage. É quase como se não o tivesse visto. Não mexe o pescoço, não move os olhos. Continuamos andando, em silêncio. Meia quadra adiante, pergunto a ela o que houve, por que aquela súbita empáfia, aquela recusa em aceitar a amável saudação do bêbado? E ela, muito séria, esclarece: Não era comigo, pai. Ele me confundiu com outra pessoa.

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