A crônica não mata — Parte 15

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Onde antes ficava a casa do Papai Noel, no Passeio Público, ergue-se agora um coreto simples, quase um cercadinho coberto. Passo por ele e me sinto numa tela do saudoso professor Andrade Lima. O lugar está cheio de senhoras robustas e sonolentas. Meio desmaiadas, algumas se deitam à sombra, no tablado, e cochilam sob a distraída vigilância das colegas. Outras ciscam no celular, fofocam entre si, em voz baixa, mascaradas ou não. É o momento de tirar os sapatos e exibir à cidade o vermelho-pitanga de suas unhas dos pés. Cada dedo que se alonga é uma torturada obra-prima. Ao redor do coreto, quase festiva, espraia-se a ciranda das bolsinhas murchas.

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Na dança das cadeiras do Passeio Público o urubu-rei desapareceu. Os gaviões-caboclo também. A piranha está incomunicável, mas o calau abissínio continua em sua gaiola habitual, piscando para mim aqueles cílios curvos, tão ternos, que me lembram alguém que um dia amei (e esqueci). Quem saiu ganhando, no entanto, foi mesmo Billy, o pelicano de Curitiba, transferido para a ilha dos macacos-aranha, bem longe do alcance dos visitantes humanos. Agora ele só pode ser apreciado a distância, é apenas um fulgor branco entre as árvores, uma aparição angelical sob o sol da manhã de sábado. Junto a ele, claro, avista-se o velho maguari corcunda, inseparável parceiro de claustro e solidão, aquele que, embora imóvel, está sempre sonhando que dança e rodopia, como um grou mítico ou um dos jovens companheiros de Teseu em Delos, aqueles moços que giravam e giravam, alegres por enfim se verem do lado de fora do labirinto.

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Perdão se salto de uma metáfora a outra. O cronista é um narrador digressivo à moda sterniana, e me sinto obrigado a concordar com Orhan Pamuk, que uma vez disse serem os narradores digressivos um bando de macacos felizes, e justamente por viverem assim sem compromisso, pulando de galho em galho.

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É para ser feliz, portanto, que me arrisco em outra macaquice: sempre que vejo o maguari corcunda do Passeio Público, penso também na justiça brasileira. Quando não está dormindo, está invariavelmente à espera do sono.

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No imenso viveiro de passarinhos do Passeio, cardeais, canários e curiós partilham o espaço com dois pavões macambúzios. Sim, macambúzios, e qual o problema? Concedamos a eles esse pequeno benefício, o direito de turvar-se diante de seu próprio infortúnio. Simpatizo muito com os pavõezinhos. Vivem como podem, em constrangida tristeza, num acanhamento digno de seus grandes pés tortos. Dou a volta no viveiro, atrás de um sanhaço azul e amarelo, que saboreia uma meia laranja. No caminho encontro um aviso novo pendurado na tela. Ele nos conta que os passarinhos ali reunidos são todos sobreviventes. Foram resgatados do tráfico, ou das mãos de cruéis colecionadores de animais. Recuperaram-se tanto de ferimentos atrozes quanto de doenças as mais debilitantes. Em vista disso, sugere o aviso, não poderiam voltar à natureza. Se pudessem, estariam livres; se voltassem, morreriam. Ora, penso eu, nós também não podemos mais voltar à natureza. E mesmo assim voamos. Ou será que não?

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Se pudéssemos voltar à natureza, estaríamos livres. Se voltássemos, morreríamos.

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Quando as pessoas começam a parecer desinteressantes para um cronista, ele sabe que tem um problema. Comigo, atualmente, tem sido assim. Nas ruas, as pessoas se dividem em duas categorias básicas, reducionistas: as que usam e as que não usam máscara. Diante isso, concluo eu, uma única pergunta continua, e continuará, por muito tempo, a me assombrar: depois de 605 mil mortos, o que nos custa esconder metade da cara?

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Antes da pandemia eu ia à Ilha da Ilusão, visitar o busto bigodudo de Emiliano Perneta, e sempre o encontrava cercado por duas ou três camisinhas usadas. Pois bem. Os preservativos sumiram, não achei mais nenhum em torno do nosso príncipe dos poetas. Em vez deles, porém, descobri duas máscaras no chão, descartadas provavelmente às pressas, no calor de não sei quais acontecimentos. Numa delas, aliás, notei que florescia uma grande mancha de batom vermelho. Um recado da primavera.

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A natureza parece feita de antipatias, escreveu William Hazlitt, num famoso ensaio acerca do ódio. Gosto do texto, mas discordo dele, e gosto de discordar. A natureza não é feita de antipatias, e nem parece ser. Ela é desapaixonada. Faz o que tem que ser feito, sem dramas, sempre em busca de equilíbrio. Antipáticos somos nós, que reclamamos do sol, maldizemos a chuva e brandimos o punho contra os sabiás. Mesmo um gato, quando nos parece antipático, está apenas imitando a pessoa com quem convive e a quem, com sua rabugice de fachada, busca gentilmente agradar.

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Há homens trabalhando em diversos telhados ao redor do meu prédio. Da janela de minha biblioteca posso ver ao menos três equipes de operários, ocupados em trocar telhas e calhas. Parecem esperar a tempestade do século. Como Banquo, em Macbeth, olho para o céu escuro sobre a charneca que chamamos de cidade. Vai chover hoje à noite, comentou aquele infeliz capitão, já no terceiro ato da tragédia shakesperiana. Pois deixe que chova, respondeu seu assassino, segundos antes de apunhalá-lo vinte vezes, na cabeça.  

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