A crônica não mata – Parte 14

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Um homem magro me aborda na esquina da Fernando Moreira com a Visconde de Nácar. A noite é fria, mas ele está bem protegido. Veste duas blusas, um casaco de lã, a bermuda por cima da calça de moletom. Aparenta ter a minha idade, mas sei que é mais moço. Não usa máscara, e sorri como quem bebeu o bastante para justificar seu sorriso. Me chama de amigo e me pede desculpas. Indelicado, aviso que estou sem dinheiro, o que não deixa de ser verdade. Ele diz que não é isso, ele não quer dinheiro, só quer me mostrar uma coisa. Aponta para a estação-tubo a poucos metros de nós. Montou sua cama debaixo dela. É ali que o homem magro passará a madrugada. Espalhou folhas de papelão sobre as pedras portuguesas e as forrou com dois ou três cobertores. Uma toalha enrolada lhe servirá de travesseiro. Constrangido, simulo certo assombro, embora eu reconheça, sim, algum talento naquela sua composição. Um cuidado de camareiro no equilíbrio entre as cores e as texturas de cada tecido. Esta é a minha cama, diz ele. É uma boa cama, você não acha? Acho, é uma cama ótima, mas estou com pressa e repito que não tenho dinheiro. O homem magro não se magoa, sorri ainda mais. Ele não pediu dinheiro, só quer me mostrar uma coisa e, se possível, me fazer uma pergunta. Pois então pergunte logo, eu proponho. E ele, piscando um olho bêbado, arremata: Dorme comigo? 

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Caminho por uma Cândido Lopes excepcionalmente escura, deserta de tudo. Faz tempo que não ando pela cidade à noite, devo estar desacostumado. Ainda é cedo, aonde foram todos? Passo diante da Biblioteca Pública e só ouço o rumorejar do vento nas palmeiras. Cogito apressar o passo, mas me sinto ridículo. Continuo, portanto, a caminhar, até que, do nada, irrompe ao redor um coro de muitas vozes: Noite feliz, noite feliz… Mas como? Estamos em outubro, já começaram os ensaios no Palácio Avenida? Não, não começaram, o edifício histórico está quieto, adormecido. Não. A música deve estar vindo de algum miolo de quadra, de um prédio abandonado, talvez de um bueiro. De uma lixeira, ou mesmo da minha cabeça. Intrigado, olho para cima. E se for apenas o som do vento nas palmeiras? Pobrezinho, nasceu em Belém… Desisto, não sou capaz de localizar os cantores. Sua canção, no entanto, me envenena. Detesto dezembro. Me sinto mal-humorado, rabugento, miserável. Um Scrooge de algibeira vazia. Deve ser um coro de 48 vozes, calculo. Quarenta e oito fantasmas de 48 natais passados. O que vieram me mostrar? Em pleno outubro!

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Em casa, à noite, quando me sinto muito cansado, folheio velhos livros de figuras, coleções ilustradas em papel brilhante, e evito ler o que quer que seja. Faço isso sem culpa, como quem visita uma galeria de memórias nem sempre conscientes. Semana passada, por exemplo, reencontrei numa antiga enciclopédia uma obra famosa de Géricault, A Balsa da Medusa, em que não pensava havia muito tempo. Ao menino que fui, essa pintura falava de aventuras inócuas, caçadas ao tesouro e filmes de pirataria, batalhas navais, façanhas malsucedidas, ilhas ensolaradas e moedas de ouro, dentes e paraísos perdidos. Seus personagens nem sequer me pareciam trágicos, eram apenas anti-heróis vivendo um desagradável hiato entre uma e outra peripécia. Só mais tarde fiquei sabendo da terrível história por trás do naufrágio que imantou Géricault e toda a sociedade europeia do início do século 19. A fragata Medusa foi a pique na costa da Mauritânia, em 1816. Não havia botes para todos e, por isso, às pressas, construiu-se uma balsa de vinte por sete metros, na qual embarcaram 135 pessoas. Dez homens sobreviveram. Dois deles escreveram um livro. Nele contaram haver passado duas semanas à deriva, delirantes, sem água e comida, bebendo vinho e urina. Diziam que a tragédia se dera graças à incompetência da Marinha francesa, e exigiam do Estado alguma reparação. Relataram que houve motins, massacres e coprofagia a bordo. E que boa parte dos náufragos, infelizmente, havia se rendido ao canibalismo já no segundo dia de seu infortúnio, menos por fome que por desatino.

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Hoje, quando olho para aquela balsa desgovernada, penso no Brasil. Reexamino a tela e passo a tripulação em revista. Vinte homens. Entre eles, há quem ainda tenha um fiapo de energia para acenar ao naviozinho que passeia, quase diáfano, pela linha do horizonte. Há quem somente acompanhe os acontecimentos, uns com esperança, outros com descrença. Há também os apáticos, os desistentes, os desesperados. Os que se recolhem à sombra da vela e dos próprios rancores. E há, claro, os cadáveres. Só não é possível saber se aquele naviozinho, tão distante da balsa, irá avistá-los ou não. Se o resgate será bem-sucedido. Se o sol, na pintura, está nascendo ou se pondo. Ou mesmo se isso faz alguma diferença. De resto, é a perspectiva de sempre: nuvens de chumbo acima de tudo, o abismo abaixo de todos.

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Um dos mortos que vemos n’A Balsa da Medusa, largado de bruços e sem camisa, quase no centro da tela, é ninguém menos que Delacroix. Consta que ele posou para Géricault, apesar de eu não saber em que circunstâncias. Sei é que Delacroix, décadas mais tarde, registrou em seu diário a reação que teve ao ver pela primeira vez a obra concluída. Apavorou-se tanto, diz ele, que saiu correndo pela cidade, “como um louco”. Ah, quem nos dera correr como Delacroix! Correr do ateliê de Géricault até a Rue de la Planche, em Saint-Germain! Correr sem parar, como loucos, durante dois séculos de história da arte, correr para bem longe desta representação do nosso próprio naufrágio, correr como apavorados artistas românticos em Paris!

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Uma de minhas gatas pretas se chama Medusa. Quando contei isso à minha querida amiga Mariana Ianelli, ela me fez um alerta misterioso: Cuidado, cuidado com esses nomes! Eu ri, e ela também. Só não contei a Mariana que ao batizar minha gatinha, no ano passado, eu sabia muito bem o que estava fazendo. Na época, um único desejo me inspirava: que a gata me transformasse em pedra. E, claro, ela me frustrou. Minha Medusa tem um coração de manteiga, seu olhar não faz mais que derreter-me. Na intimidade, inclusive, só a chamo de Memê.

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É com gosto que acompanho, de manhã, os trabalhos da nossa cafeteira. Minha ampulheta favorita. Escuto seus engasgos ao fim da coagem e acho graça. É como se a máquina vivesse um êxtase, atingisse o clímax. Ela geme, suspira e sua, e o cheiro do café se espalha pela casa. É para esse tipo de coisa que acordamos: para os módicos prazeres da vida. Aproveitemos, antes que tudo mingue. O quilo do café, afinal, já está custando dez, doze, treze reais. É por isso que eu o bebo devagar, aos centavos. E só em xicrinhas.

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Da janela da cozinha, inventario a vizinhança. Com moderação, tomo um gole de café. O vasto ipê-roxo no estacionamento da Marechal está de novo florido. É a segunda vez durante a pandemia. Alguém pintou cinco hibiscos gigantescos na parede lateral de um sobrado da General Carneiro. São flores vermelhas, amarelas, alaranjadas. Cada uma tem o tamanho de um homem. A princípio eu as achei feias. Mas logo passei a apreciá-las. Gosto delas. O que aconteceria com Curitiba, afinal, se todos pintássemos hibiscos em nossos muros e paredes?

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Noto um movimento incomum na copa de uma palmeira, a uma quadra do meu prédio. Uma de suas folhas cai, pesadamente, na esquina da XV com a Faivre. Ali embaixo um homem a recolhe e, com perícia, a lança pelos ares de modo a fazê-la pousar, agora suavemente, sobre uma pilha de outras folhas, já murchas, à espera da remoção. Mudo de janela em busca de um ângulo mais favorável. Levo comigo a xicrinha. Na coroa da palmeira (daqui a enxergo melhor), vejo um homem em meio à folhagem, suspenso a uma altura de mais ou menos três andares. Hábil, ele maneja um facão, com que vai desbastando a palmeira. Veste um uniforme verde e tem os cabelos pretos. Visto de costas, eu bem que o poderia confundir com uma lagarta mais reforçada, tão grande quanto os hibiscos da General Carneiro. Tomo um gole de café. O homem para de se mexer, descansa por alguns minutos, esgotado. Se pudesse, dormiria ali em cima. É onde se sente em casa, seguro, confortável. Se amanhã, aliás, acontecesse de eu acordar e ver, pendendo daquela palmeira, um casulo de noventa quilos, é provável que tal descoberta nem me surpreendesse. Eu simplesmente passaria meu café e me poria à janela, à espera da borboleta.

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Li num ensaio de Julian Barnes que uma borboletinha branca surgiu um dia em alto-mar, no Atlântico Norte, e voejou em torno do mastro da balsa da Medusa, enchendo de esperanças a sua triste tripulação de náufragos. De acordo com Barnes, Géricault não quis pintar a borboleta por dois motivos óbvios. O primeiro era pessoal. Ele buscava evitar um tipo de sentimentalismo que considerava perigosamente fácil. Todos sabemos, afinal, que uma borboletinha branca pode provocar, nos seres humanos, reações emocionais exageradas. Somos um animal sensível. O segundo motivo, por sua vez, seria puramente técnico. Mera questão de escala, sugere Barnes. Entre duas dezenas de homens musculosos e seminus, vivos ou mortos, numa tela de sete por quatro metros, a borboletinha mal seria notada. Custaria ao artista, no máximo, o esforço de desferir uma ou duas pinceladas de branco bem ali, entre os terríveis vagalhões do destino. Concordo com Barnes. Mas, ao mesmo tempo, olhando para o quadro hoje, algo me incomoda. Olhem de novo. Quem nos garante que a borboleta não está lá?

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