Pandemia, presidência, psicanálise

Escrevo hoje – e muito – para tentar tecer algum fio ordinário em meio a um contexto extraordinário.

Porque vivemos um contexto extraordinário, certo? Extraordinário sempre me pareceu palavra positiva, feliz, acima da média. Mas é mais. É o que está fora da ordem conhecida, fora do habitual. Só somos habitantes quando habitamos o habitual. Quando deixamos de habitá-lo, saindo do espaço e tempo conhecidos, passamos a estranhos, estrangeiros, desengrenamos a ordem ordinária e caímos na ordem fora da ordem, na extra-ordem, extraordinária.

Com certo grau de ineditismo, em tempos de #fiqueemcasa, estamos estrangeiros dentro de nossa própria habitação, entre as paredes da casa ou as do corpo, que nos enformam e cercam nossos vazios. Desabituamos e desabitamos para, quem sabe, reinventar novas formas de habituar e habitar.

Crédito da foto: Peterhowell/istock

Em momentos de caos como o que vivemos, experimentamos desorientação, desconcerto, em alguns casos desespero, ansiedade, pânico. De onde tirar forças para suportar o mundo e nos suportar? Talvez daquilo que fizemos com o que fizeram de nós. Ou seja: desfolhando os discursos inumeráveis que nos formaram, que foram desde o nascimento inscritos em nós. Lançando mão da linguagem que, sim, nos habita, para buscar algum equilíbrio e tentar, no cenário extraordinário, alguma ordem estruturadora. Não é simples, vai além da força de vontade. Afinal, não somos formados apenas por discursos que nos fortalecem, somos resultado também de encontros feitos de medo, de indiferença, de violência, que podem vir à tona sem que saibamos muito bem de onde brotam, podem surgir silenciosos no corpo, amortecem, arrepiam, provocam insônia, palpitação. E cenários catastróficos múltiplos podem entrar na dança do imaginário.

Na busca por linha-guia, outra forma de encontrar suporte está no encontro com o outro, esse ao nosso lado, pai, mãe, esposa, marido, filhos, amigos, namorada, namorado. Em vez de enfrentarmos tudo sozinhos, recorremos a esse pequeno outro, gente como a gente, que nos ajuda a estabelecer contato horizontalizado, de igual para igual. São pessoas queridas que também estão perplexas e que, talvez unidas, possam proporcionar alívio mútuo.

Pois bem: um recurso para lidar com o extraordinário é, então, olhar para dentro, descobrir ali os discursos que nos habitam e que podem nos dar suporte ou nos fazer desmoronar. Outro recurso é olhar para os lados, encontrando no outro um consolo, a piada que distrai, o abraço do corpo ou da palavra.

Mas há ainda uma terceira forma possível: a que olha para cima. Que cria uma relação vertical, obriga-nos a erguer o pescoço e nos faz pequenos.

Consigo pensar em dois modos de buscar socorro em tempos extraordinários olhando para cima: o primeiro é recorrer, lá no alto, a um Deus. Uma entidade que sabe o que está fazendo, que tem planos para todos, que leva embora quem ele acha que já cumpriu missão na terra. Uma entidade que transcende esse mundo natural e limitado, algo sobrenatural, extranatural, igualmente extraordinário. Trata-se de depositar na vontade divina o plano da salvação. A segunda forma é olhar para cima a fim de encontrar um líder, humano mesmo, do mundo natural, seja um pai, que nos foi dado pela contingência, seja alguém escolhido pela maioria por sua excelência em coordenar anseios coletivos, capaz de liderar um conjunto de individualidades que abstratamente chamamos de nação.

(Talvez sejam desnecessários esses parênteses, mas as três formas de lidar com o extraordinário – dentro, lado, alto – não se excluem.)

Eu acharia muito útil, por exemplo, viver em um país cuja autoridade principal fosse capaz de dizer a seus conterrâneos: vamos fazer um isolamento total até o dia x. Depois disso, conforme apontarem os principais consensos científicos e os números – corretamente apurados –, tomaremos novas decisões, tendo em vista o amparo necessário aos mais vulneráveis social e fisicamente, mirando a vida como valor maior.

Quando Nietzsche disse que Deus estava morto, não era o filósofo quem o estava matando. Ele apenas constatava que a figura, lá em cima do eixo vertical, se fragilizava a ponto de ser pulverizada, desmanchada. O pai, o professor, o padre, o patrão. O presidente. Essa coincidente sequência de pês, na direção da qual costumávamos olhar e seguir, caiu. Ficamos a ver navios, pois nos céus nada mais havia.

Não são poucas as matérias de jornal e entrevistas que ligam o presidente à loucura, à psicose, ao narcisismo, à paranoia, ao delírio, à perversão.

Crédito da imagem: Sensacionalista.

Não serei eu a diagnosticá-lo, ninguém estaria em condições de fazê-lo, à exceção do analista ou do psiquiatra dele. Como duvido que o presidente faça análise ou tenha um psiquiatra, posso continuar dizendo que ninguém estaria em condições de dizer qual é seu quadro psíquico. E ainda: mesmo que ele estivesse em análise, o analista não viria a público alardear diagnósticos. Então, quanto a isso, paramos por aqui.

Mas podemos aproveitar a ocasião para esclarecer nomenclaturas.

A psicanálise, de onde saem termos como loucura, psicose, paranoia, delírio, perversão, aproxima-se da ciência por sua capacidade de produzir saber, de produzir um saber novo a respeito do sujeito, de perscrutar o senso-comum das historinhas contadas pela própria consciência, das versões que contamos de nossa vida e que nos parecem verdadeiras. A psicanálise revolve o discurso oficial que o indivíduo tem de si, o mito individual que construímos para contar a nossa história. Afinal, sem investigação, a Terra até parece mesmo plana. Sem explicação melhor, não parece má ideia achar que trovão é berro divino.

Porém, embora se aproxime da ciência, a psicanálise não é capaz de produzir experimentos que possam ser repetidos e validados para todos os sujeitos de modo uniforme. Aproxima-se da arte ao produzir questão no um a um, de sujeito a sujeito, dando substância à ideia de que nenhuma análise é igual a outra, e cada sujeito tem uma história que é só sua, irrepetível.

A psicanálise trabalha, no entanto, com três estruturas psíquicas: as neuroses, as psicoses, as perversões. Elas costumam ser usadas no plural justamente porque cada sujeito tem a sua neurose, ou a sua psicose, ou a sua perversão. E sobre elas já foram escritas milhões de páginas. É prepotência minha tentar explicá-las aqui. Mas vou tentar. Aos mais entendidos, peço que perdoem as generalizações, mas não os erros conceituais que porventura apareçam. Façam-me saber, corrijam-me.

Vamos então falar de neuroses, psicoses e perversões?

Nasceu um bebê! Esse bebê chora. Esse bebê apenas chora. Esse bebê só sabe chorar. O que ele quer? Perguntamos a ele e que resposta obtemos? Buá, bué. Não podemos deixá-lo chorando, está com frio, está com fome, está assustado, chora pelo estupor de ter sido desabituado, desabitado. Só não podemos ficar discutindo muito e deixá-lo lá, no abandono. Se ficar desamparado, ao contrário de muitos animais, ele morre. Nasceu um organismo ali, mas ainda não nasceu um sujeito, há apenas o infans lacaniano, pedacinho de carne sem bordas, cria do humano, vida nua. Fure-lhe a boca com um mamilo suculento, amamente-o, supra suas necessidades, lave-o, tire-lhe as viscosidades de nariz e olhos, limpe dobras e os orifícios todos, molde-o. Vista-o com os tiptops da tia, mas também com as palavras, para que se comece o banho de linguagem, das lalações às nomeações e às descrições e pareceres do mundo. O bebê vai gostar. Vai gostar tanto que não vai querer trocar isso por nada, afinal basta eu gritar que imediatamente encontro socorro e conforto, colo, leite, água morna, carinho e calor. Quem é esse Outro que cuida de mim, que não pode me ver gritar que já vem me satisfazer as necessidades que nem ao certo sei quais são? Se me dizem que é fome, acabo acreditando na fome, se me dizem que é sono, quem sabe seja mesmo, se me dizem que estou doente, quem sou eu para duvidar, se me chamam de manhoso, como rebater se ainda nem sei que sentido dar a esse significante?

Esse Outro que cuida de mim é minha mãe. Ou: é alguém a ocupar uma função materna. Mas eu não sei que ela é mãe, ela e eu somos a mesma massa indissociada, ela sou eu, eu sou ela, eula. Completamo-nos e meu único interesse é manter essa estabilidade. Choro, sou atendido com um gesto e um nome para o meu choro. Somos um, enfim. Identificamo-nos, preciso dessa identificação para saber – se não ainda quem sou – ao menos para saber que sou.

O bebê, depois de alguns meses, é colocado em frente a um espelho e, eureca de fraldas, age de um jeito diferente: sorri, estranha, olha para a imagem de si e do outro, descobre-se descolado, seu corpo desenha silhueta no espaço, a mãe abre sorriso ainda maior, o pai, satélite meio bobo, gira em torno. E o bebê descobre a mãe, ama a mãe, deseja ainda ser tudo para a mãe, pois ela se satisfaz com ele e ele com a ela, então fará o que puder para que a mãe jamais deixe de amá-lo, vai se perguntar o que essa aí quer de mim, vai se submeter às vontades dela para não perder amor.

Até que algo sai errado, bastou crescer um pouco. Agora chora e recebe em troca um “já vai”, “agora a mãe não pode”, “a mãe vai trabalhar”, e um olhar que não se volta exclusivamente para ele, mas olha através, mira outros olhos e horizontes, e – o horror, o horror! – deseja coisas além dele, ex-majestade!

Uma vida feita de sim ganha gesto e som novos: não. Um não a que Jacques Lacan chamou de “Não-do-pai”, “Nome-do-Pai” (o non e o nom du père). Dá-se esse nome a qualquer elemento que exerce a função de cindir mãe e bebê, que abre a bocarra da mãe – pronta para engolir o filho – e diz chega, há mais vida fora disso, você deseja outras coisas, você trabalha, você ama outro, você tem múltiplos horizontes de desejo.

Ao bebê, antes estável e satisfeito, resta a falta e o aprender a lidar com ela, resta sair andando, resta sair falando, resta sair em busca de alguma coisa que todos nós, hoje adultos, continuamos buscando, posto que somos sujeitos de desejo. Haverá sempre um não que nos interdita, que nos diz que não podemos tudo, que não sabemos tudo, que não podemos querer tudo, que precisamos adiar o gozo, que precisamos dosar o gozo, que gozamos apenas parcialmente em troca de convivência, em troca de contratos sociais, em troca de não repetirmos a experiência do pai da horda primitiva, do pai tirano que se valia da autoridade da força para gozar sem freios e que precisou ser morto pelos filhos, no mito efabulado por Freud. Tudo em troca de alguma segurança, de inserção no processo civilizatório, em que pese o mal-estar de precisarmos o tempo todo negociar o escoamento das pulsões, refrear libidos, recalcar afetos.

Segundo a psicanálise, esse não inscrito de modo indelével no sujeito cria nele uma estrutura neurótica. Neurótico é quem tem o não inscrito em si, é alguém que aceita a castração para poder, a partir dela, desejar, é alguém que sabe que para jogar o jogo do desejo é preciso demarcar o campinho, é quem construiu em torno de si bordeamentos e bordados capazes de, como paredes de uma casa, cercar o vazio, esse espaço que, sem paredes, se torna ilimitado, indissociável, indistinguível, território do vale-tudo.

Acabo de descrever o que a psicanálise costuma chamar de os Três tempos do Édipo: no primeiro, o bebê quer ser o falo da mãe, satisfazê-la integralmente, ser ele o objeto de sua satisfação, os dois são um, o mundo está fechado, não há vagas; no segundo tempo, surge a figura paterna com o não, você não terá tudo, não poderá tudo, sua mãe deseja além; no terceiro tempo, depois do choque do não, o pai ensina ao sujeito que ele não pode tudo, mas pode muita coisa. Que seja desejo.

(Parênteses necessários: a estrutura neurótica passa por esses três tempos. Não há, no entanto, estrutura considerada “melhor” ou mais “normal”, como muitas vezes o senso-comem costuma repetir. A neurose também desencadeia patologias, sofrimentos, como as histerias, as obsessões e as fobias).

Em muitos casos, devido a uma série de contingências, encontros e desencontros, esse não que marcará a estrutura neurótica deixa de se inscrever e o sujeito permanece como falo imaginário da mãe, não inscreve limites em torno do corpo, não tem em si a castração responsável pelo adiamento ou dosagem do gozo (vou traduzir aqui o gozo como um “faço tudo que eu quiser, não me importa a censura dos outros e do Outro”, que é algo, portanto, muito diverso do desejo). Essa ausência do não, psicanaliticamente chamada de “foraclusão do Nome-do-Pai”, retira a barreira entre o “até onde posso” e o “até onde não posso ir”. A foraclusão – termo que Lacan emprestou do Direito – do Nome-do-Pai caracteriza a estrutura psicótica.

Em situações-limite, de tensão, restrição, de confronto com a castração, o neurótico pode sublimar, pode simbolizar, falar a respeito, lamentar, enlutar-se. O psicótico, por sua vez, pode apagar esse capítulo da vida e substituí-lo por outro, inventado. Entramos no território do delírio. Se o psicótico não consegue simbolizar uma realidade que se lhe apresenta, pode inventar outra para si. Se o não do pai não se inscreveu, ele pode inventar um Pai que lhe dê ordens, que fale em seus ouvidos – por isso identifica-se muitas vezes com figuras fálicas, potentes, como deuses, jesuses e napoleões.

Chegamos então à última das estruturas psíquicas descritas pela psicanálise: as perversões.

Repetindo para retomar a partir daí: o neurótico inscreveu o não e dá um jeito de contorná-lo. Não se pode matar, mas pode xingar, boicotar, dizer que tem vontade de esganar. Não se pode ter relações incestuosas com a mãe, mas há tantas outras mulheres no mundo. É proibido fazer muitas coisas que o neurótico não fará porque sabe que é proibido. Ele pode testar um ou outro limite – às vezes sob duros golpes de culpa –, mas se conterá em algum momento, desviará, fará outras coisas da vida, sublimará.

E o que faz o perverso? Em relação ao não, a psicanálise afirma que ele foi inscrito no sujeito, o não proibidor foi implantado e compreendido, como na neurose. Mas será renegado, desafiado, muitas vezes cinicamente provocado. É como se o perverso dissesse, em tom de deboche: “ah, não se pode matar? Quem disse? Posso sim”, e vai lá e mata. “Oh, eu não posso fazer sexo com animais? Será que não mesmo?” E vai lá e faz. “Puxa, então quer dizer que estuprar é proibido? Não parece, porque eu estupro”. “Que feia que é a pedofilia, não? Um horror. Impossível? Pois para mim não é”. “Não se pode torturar, é proibido, é? Então veja isso”. “Quer dizer que não podemos sair de casa…?”. Enquanto o neurótico é sujeito do desejo, pois tem inscrito e respeita (às vezes como prisioneiro ou refém) o não, o perverso é sujeito do gozo, do tudo posso naquilo que me faz gozar. Serial Killers com estruturas perversas conseguem geralmente ser pegos por serviços de inteligência, pois são previsíveis em sua demanda por gozo mortal e irrefreável, inadiável, não dosado pela castração, que foi renegada.

Estou traduzindo um romance belíssimo, da escritora italiana Rossana Campo, chamado Onde Você Vai Encontrar um Outro Pai Como o Meu, e que deve sair esse ano pela editora Âyiné. Veja só esse trechinho inédito:

Várias vezes me vejo em cenas como essa, várias vezes tentei sentir de novo aquilo que eu sentia quando era menina. Ele promete que vamos fazer alguma coisa juntos, é domingo ou feriado de Páscoa ou Natal, eu estou contente, faço planos, imagino tudo que eu gostaria de fazer ou ver com ele. Na maior parte das vezes, porém, vamos parar num bar, dentro de uma espelunca mal iluminada, um dos tantos lugares que ele conhece, botequins espalhados pelo interior da Ligúria, com velhinhos dos vilarejos jogando baralho ou sinuca, com a bituca do cigarro entre os dentes, e aquele cheiro de boteco decadente, inconfundível, mistura de vinho, cerveja, mijo, suor e cigarro. Quando entramos, pelos olhares que recebo, entendo na hora o que pensam de nós: chegou o biruta com aquela pobre coitada que, quis o destino, teve um pai assim.

Porém, quando ele me leva pra passear pelos seus lugares, eu fico também curiosa, e o fato de estarmos em locais nos quais não deveríamos estar, de estarmos fazendo algo que todos dizem ser errado, que não se deve fazer, injeta em mim um senso de desafio, de alegria e de rebelião diante do mundo. Mas fico também inquieta quando as coisas começam a demorar muito, quando penso que mamãe está nos esperando em casa ou imagina que estamos em outro lugar, em algum jardinzinho respirando ar puro, brincando com outras crianças.

Ou seja, a personagem narradora experimenta fascínio diante da exploração do limite, força-o um pouco, mas tem algo que o pai não tem: o não inscrito e operante, que faz com que ela se preocupe e queira dar um basta no exagero do gozo, dosificando-o, querendo voltar para casa e acalmar a mãe.

Portanto, pensar apenas no gozo próprio, desconhecendo/foracluindo ou desdenhando/renegando a castração são posições ligadas às estruturas psicóticas e perversas, respectivamente.

***

Comecei falando de pandemia e de formas de nos suportarmos nesse evento extraordinário de nossas vidas: olhando para dentro, para os outros ao nosso lado, e para cima – para o Outro exteriorizado, seja ele um deus ou outra variação de governança e tutela. Cheguei ao presidente, cuja estrutura mental já foi diversas vezes questionada, não sem razão. Não condeno quem o chame de louco, psicopata, perverso, mas todos esses rótulos ganharam sua versão popular, de sentido mais amplo e difuso. Aproveitei a ocasião para tentar sistematizar – para mim mesmo, inclusive – termos psicanalíticos que tratam das nossas estruturas psíquicas.

Foi um passeio errante, peripatético. Numa redação escolar minha nota cairia muito nos critérios de sequência lógica e coesão. Espalhei-me, saí dos limites neuróticos, mas eis-me aqui, justificando-me, punindo-me, sofrendo de culpa e supondo olhares inquisidores.

Abraços feitos de palavras, obrigado a quem me seguiu à deriva nesse desraciocínio.

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