Senhor Nunes!

A ambulância chega. Dois bombeiros descem da boleia, abrem a porta lateral e fazem uma espécie de parto: com mãos calmas, firmes, tiram do ventre do veículo uma velhinha trêmula de surdo espanto. Colocam a delicada criatura numa cadeira de rodas e levam-na hospital adentro.

A intervalos irregulares, a cena se repete. Velhos e velhas vão sendo trazidos nas ambulâncias vermelhas do Barreiro e do Montijo, recém retirados de suas tocas, mal-ajambrados numa roupa qualquer.

Apago meu cigarro e volto pela quarta ou quinta vez à sala de espera.

Lá dentro, decido ficar um pouco em pé. Teria que me sentar novamente de lado, numa manobra difícil, sem tocar na cadeira o doloroso quisto dermoide que cresceu sobre meu cóccix.

O hospital é uma força centrípeta. Parece puxar-nos mais e mais para dentro, sem que ninguém nos atenda ou liberte. Alguns, afinal, não sairão mesmo vivos daqui.

Deve ser noite. Eu veria as horas no celular, mas não me permitiram entrar com nada.

– Não temos onde guardar seus pertences, disse a mulher que me entregou o saco com o pijama e a fralda. – Há algum familiar seu lá fora?

De modo que o tempo aqui é medido pelo gemido dos enfermos.

Deitado de lado, em jejum, observo meus semelhantes. Na maca mais próxima de mim, entre biombos, vejo um par de pernas masculinas, pálidas, salpicadas de manchas castanhas. É alguém que só consegue gemer garatujas sonoras

No outro lado da sala, bem em frente a mim, está uma senhora muito gorda, de sobrancelhas espessas, ar de coitadinha. Me lembra um grande urso panda. Estende a mão para as enfermeiras que passam atarantadas.

– Estou com sede! Estou despida! Um copinho d’água, p’lamor de Deus!

As enfermeiras a ignoram ou censuram:

– Acabou de tomar água! Temos muito que fazer, não invente!

– Não está nada despida! Deite-se!

Em diagonal, no canto oposto da sala, há um senhor quase careca, de suíças teimosamente negras. Deitado de costas, não se move desde que cheguei. Uma enfermeira se aproxima dele apreensiva, estapeia-o na cara.

– Senhor Nunes! Senhor Nunes!

Prepara rápida uma injeção, aplica-lhe no braço. Nunes estremece. A enfermeira fica a observá-lo por um longo tempo, até se dar por satisfeita.

Viro-me para o outro lado, sem encostar a bunda na maca, que é dura, de napa fria. Me cubro. Tenho vontade de fazer xixi, mas o único banheiro está interditado em função da covid. Daí as fraldas, todos usamos fraldas no purgatório. Não sei se consigo fazer xixi numa fralda. Perdi o jeito.

Acordo, exausto. Um médico se aproxima com um estetoscópio a balançar no peito, tira as luvas, diz algo engraçado a uma jovem enfermeira de tranças grudadas na cabeça. Ela ri, sai correndo. Outras duas viram pra cá e pra lá um senhor magrinho, que já tem a pele umbrosa dos mortos. Tiram-lhe a fralda, limpam-lhe as nádegas, o pênis, colocam uma nova fralda. Ele não acorda ou finge não acordar.

Deve ser tarde. Já me habituei à dor, à sede, fome. Começo a me sentir parte desse liame de corpos trementes, desse coro de socorros abafados pela desolação universal.

Por mais que as enfermeiras injetem antitânatos em nossas veias, por mais que nos limpem e corram com seus crocs em busca de sóis químicos para enfiar em nossas bocas secas, somos um cardume de ninguéns rumo ao nada.

Isso, de uma forma estranha, me alivia de mim, me iguala, me conforta.

Alguém pronuncia meu nome. Acordo novamente. O médico que me prescreveu exames e a drenagem do quisto, mal enfeixado na razão que resta, está diante de mim.

– Faremos a drenagem amanhã. Seu teste de covid deu negativo.

– Por enquanto, diz algures uma voz esfiapada.

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