Rumo ao Palácio da Bemposta?

Três semanas andando. A par da curiosidade usual pela paisagem e pela vida estrangeiras, a impressão mais forte que tenho em Lisboa é a de uma quase generosa ausência. Ando pelas ruas antigas e estreitas do Chiado, da Baixa, Madragoa, Bairro Alto e não vai comigo, fielmente, o que deixei no Brasil: o liame de pessoas com que costumo me atar até a imobilidade espiritual. Num misto de alívio e aflição, sinto no meu corpo a ausência dessas pessoas, o buraco deixado por sua desaparição. Convalesço de mim mesmo. Sinto falta de minhas relações como de um jogo viciante que joguei dias e noites adentro, anos a fio, como um sonâmbulo, sem parar, sem dormir nem acordar. É este lugar, o lugar que o jogo ocupava, que está vazio agora. Melhor, não está vazio: sopra nele uma espécie de vento, o ar fresco de uma melancólica leniência.

Levo minha falta de peso até o Terreiro do Paço, me deixo olhar o Tejo, esquisito, despossuído – o que sobrou de mim sem os apelos do drama (esse eco que se dissipa). O corpo liberto de busca e abandono, real a despeito das virtualidades mentais – este, então, sob o fluxo incessante das emoções, este sempre fui eu? No mínimo, este sempre também fui eu.

Queria isso, mais que tudo, ao vir para Portugal e permitir um oceano entre mim e o passado. Queria o que resta, casca ou semente, as sobras do repasto. Não é ruim. Ainda não sei se é bom. Olho o Tejo e ninguém me espera em parte alguma. Olho o que vejo. Nenhum apelo, próximo ou distante, embaça a paisagem. Na cidade estrangeira sou finalmente um homem só que olha o rio e poderia se afogar nele, singrá-lo ou tirar uma selfie com a ponte 25 de Abril ao fundo. Essa liberdade me assombra, produz uma ligeira vertigem diante do abismo de estar aqui e ser indefinidamente eu. Não sei se isso é bom ou ruim porque não estou habituado a dispor de meu tempo. Os condicionamentos a que toda uma vida de dependências mútuas me acostumou se distenderam. Os músculos exaustos da alma ainda não sabem o que fazer, assim, relaxados.

Subo a Rua do Alecrim até a Praça Luís de Camões, me sento ao pé do poeta de bronze. Turistas e mais turistas passam nas mais variadas versões do mesmo consumidor de paisagens. São chineses, franceses, marroquinos, dinamarqueses, brasileiros, ucranianos, tanto faz: no regresso à sua terra mostrarão aos amigos a mesma foto ao lado da estátua de Fernando Pessoa, dirão a eles as mesmas coisas sobre o pastel de nata e o porre de vinho no Bairro Alto.

– Franz Pedro Anatoli Abdul Federico Chang ficou tão bêbado que não sabia voltar pro hotel!

Na Babilônia de línguas que ouço sobressai o vazio da aventura humana moderna. Saímos das lojas e restaurantes das nossas cidades para ir às lojas e restaurantes de outros países, tirar fotos e seguir em nossa vida paralela no whatsapp e nas redes sociais. Nossa vida através. Mas sempre há uma polonesa de shortinho ou um velho português muito humano para me distrair do fato de que o mundo é irremediavelmente raso.

O sol parece suspender o Castelo de São Jorge acima da velha cidade. Algo no ar gostoso que vem do Tejo me abraça.

Caminho distraído e sem direção. Quando vejo estou indo para o Campo de Santana, já passo em frente ao Palácio da Bemposta. É que ali perto mora a moça que conheci logo que cheguei. Fala de poesia. Quem sabe eu aperte a campainha de sua casa. E, quando vir, quem sabe esteja em sua cama. Os dias passarão, e os meses, como folhas de um caderno que se escreve cegamente. A moça e eu, então, teremos refeito, uma a uma, as amarras do afeto.

A liberdade, afinal, é insuportável para “um bicho da terra tão pequeno”.

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