Perder o barco

Ela precisa pegar o barco das duas. É o último, se perdê-lo terá que passar a noite em Lisboa. Faltam trinta minutos, calculo que precisaria de uns vinte para ir a pé até a estação lá em baixo, no Terreiro do Paço. Ela não dá nenhum sinal de inquietação. Parece interessada em mim, toca muitas vezes em meu braço. Mas fala com muita seriedade, como se fôssemos dois físicos discutindo a teoria das cordas. Ou aqui a sedução é cosa mentale, o que é mais provável, ou essa mulher vai embora em instantes. Pergunto se quer mais um chope. Apesar de ser portuguesa (eles chamam chope de “imperial”), ela entende. Responde com um sorriso que ao mesmo tempo acalma e estimula minhas intenções. Por um segundo penso na possibilidade de um amor tranquilo e me emociono: não tenho provas até o momento de que isso exista.

Bebemos no lado de fora do bar, perto de um grupo de jovens ingleses. Eles são intensos, mas falam baixo. Lá dentro uma transexual muito chapada cantarola e dança em frente ao balcão, os seios de silicone quase livres da blusinha rosa. Tudo, inclusive a bela estrangeira com cabelos de Gal Costa à minha frente, é muito novo para mim, mas sei que essa novidade é superficial. No fundo, são sempre as pessoas, desesperadas, rasas por instinto, presas a este círculo de precária consciência e hesitante loucura em que nos consumimos, sem remissão possível.

Ela vê as horas no celular. Arregala os olhos fingindo supresa.

– Perdi o barco.

Subimos as escadinhas da Calçada do Duque num silêncio atravessado por breves apreensões. Em pouco tempo nos entregaremos um ao outro, e sabemos o que isso pode vir a significar. Ela já viveu o suficiente para sair de um longa relação mais solitária do que quando entrou. Pelo pouco que me disse nos últimos dias, por uma frase aqui e ali sei que também passou pela desoladora experiência de esquecer-se de si entre paredes erguidas a dois. Mas não devemos pensar nisso, se queremos avançar precisamos ser distraídos, desmemoriados, há que jogar longe as pedras, as mãos só se tocam se estiverem vazias. Além do mais, a coisa toda pode se resumir a uma noite, nunca se sabe.

– Não sei… Talvez eu não devesse ter perdido aquele barco, ela diz, irônica.

Segura meu braço e continua a subir.

No alto das escadas decido beijá-la, bem no momento em que ela começa a falar sobre seus dissabores no trabalho. O beijo se perde no ar. Agora somos duas pessoas de névoa caminhando pela cidade de pedra, suas mãos longas e finas se movem quase em câmera lenta, estas mãos que tocarão meus lábios, minhas coxas, meu sexo e que também se perderão no ar, como todos os desejos e todos os crimes, todos os murmúrios e todos os gritos, como tudo…

Ela me tira do transe com um olhar terno, longo, termo feliz de abstrações sem fim, como se finalmente encontrasse alguém que amou à distância por anos a fio.

O sol algo saudoso de Lisboa, que me deixa meio aéreo, entra pela porta-janela. Ela fala com a nuca apoiada na mão, o cotovelo no travesseiro. Procuro concentrar-me ao máximo para entendê-la, é difícil, as palavras saem em pequenos pipocos no sotaque português. E há as expressões que não conheço, fixe, porreiro, caraça, gaja gira, às vezes entendo retrospectivamente, através do contexto. Ela recebe tudo o que eu digo com uma atenção serena. Estou hipnotizado pela sua voz um pouco grave, pelo contraste entre os ombros finos e a cabeleira espessa. Passamos o dia assim, sem pressa, sem sono, sem fome. Algo aconteceu, algo que já imaginávamos extinto, percebemos isso um no outro. Lá vamos nós de novo, testar a resistência do encanto inicial, realimentar a fera sedosa que jamais domesticamos.

Ela acende um cigarro.

– Tens uma escova de dentes?

Devíamos sempre pegar o barco, não há o que fazer, mesmo os carinhos mais sutis talvez um dia vertam fel. Mas somos esmagadoramente sós, pequenos, datados. É inevitável perder e perder o barco, de novo e de novo e novamente, até que a nau derradeira nos leve para os longes do mar.

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