Pelo branco

Ergo o rosto da pia, me olho no espelho. Para minha surpresa, no topo da orelha direita, quer dizer, esquerda, estende-se um solitário, comprido pelo branco. Cresceu esta noite? Ontem não estava aqui… Ou fui eu que, mais uma vez, não vi o que se passava fora da cabeça? Sobe reto e, de repente, perde o vigor, se retorce como se houvesse sido chamuscado. Lembra uma antena abandonada. Não, uma bandeira, o pendão irônico do outono da carne. Enxugo o rosto, ponho os óculos, passo o dedo no filamento franzino. Mal posso senti-lo. Embora ao mexer nele perceba o ponto de onde vem, na curva superior mais crestada da orelha. E a orelha, ela, deve ser por causa do pelo, me revela seu aspecto ligeiramente fosco, macerado nas bordas, de cogumelo em declínio.

Resignado, procuro na gaveta a tesourinha de cortar os pelos do nariz. Sei que é inútil me alarmar, é só a neve, inevitável, que cai dos cabelos para as orelhas. Não se pode fugir ao tempo, e talvez eu nem o quisesse, se fosse possível. Há que negociar com o carcereiro, portanto, uma coexistência pelo menos mais tolerante. Não faço parte daquele grupo de criaturas que tentam afoitamente esconder a decrepitude com cremes, bisturis, tintas, forjando ridículos simulacros de juventude. Mas tenho noção de que se sair por aí com o pelo branco hasteado na orelha posso provocar alguma repulsa ou, pior, alguma pena. Porque hoje ninguém perdoa as pessoas que relaxam com as aparências. Somos reféns de uma imagem olímpica, de uma máscara de sucesso que pensa suplantar nossos vômitos internos. Temos que estar sempre bem, como se vivêssemos num eterno filme comercial. De tal forma que um sujeito que anda desleixado não é alguém que mandou o sistema de compra e venda de felicidade fácil a puta que o pariu, mas um loser. De tal forma que já não se vê pelas ruas os admiráveis velhos guedelhudos, malvestidos por indiferença, da minha infância, aqueles seres que pareciam ter superado o olhar alheio para libertar seu espírito esfaimado ao vento.

Então sim, ok, vou cortar o pelo branco… Sem pressa.

Mas onde está a tesourinha? Estava aqui, entre os cotonetes e o Voltaren. Não, acho que Rute a colocou em outro lugar, qual mesmo? Vasculho as gavetas de baixo, depois o armarinho com rodinhas ao lado do box. Não encontro. Vou até a cozinha buscar a tesoura grande. Também não está lá. Fico indignado, onde foi parar tudo nesta casa? Preciso cortar o pelo branco. Não que eu me incomode, mas ainda não virei um velho guedelhudo e livre.

Volto ao banheiro, acabo encontrando a tesourinha entre o Voltaren e o Tampax. Antes de cortar o inquietante invasor, me recordo de meu avô arrancando os pelos da orelha, com gestos rápidos, enquanto conversava comigo. Ele queria tirar até a raiz. Mas não escondia sua velhice, era mais um tique de impaciência com a condição humana.

Faço uma pinça com o polegar e o indicador, tateio o pelo na base e, com um puxão exagerado, aqui está o pelo diante dos meus olhos. Tornou-se minúsculo, quase invisível. E era tão expressivo! Atiro-o no ralo da pia, abro a torneira. Lá se vai a evidência da minha vergonha de ser velho, neste mundo esmagadoramente juvenil.

A aparição do pelo branco me fez lembrar aquele episódio interminável do passado.

Quando meu avô Leon Robert estava perto do fim, fomos pela última vez a Itapoá. Eu tinha vinte e poucos anos. Ficamos cerca de um mês na cabana de madeira, cercados de árvores e sapos, sob a brisa do mar a trazer emanações doces e pútridas da floresta.

Leon falava pouco, passava muito tempo recuperando a casinha, fechada a maior parte do ano. Eu o ajudava às vezes, pintava janelas, trocava telhas, remendava cercas. Mas me cansava daquilo de trabalhar, vazava. Deitado na cama dura de palha, lia horas embalado por uma longínqua trama sonora de marteladas e gorjeios. Era mais um vagabundo que o avô, cansado, admitia no mundo. Ele aprendera a labutar para esquecer, haviam-no ensinado a sofrer o caos dos pobres com pontualidade britânica. Mas me consentia.

À noite, acendíamos o lampião a querosene. Jantávamos num silêncio fundo e calmo, na frágil fronteira entre a vida e a morte, sabendo que se nutriam ambas das forças de sua aparente inimiga. Nossas sombras estendiam-se, longas, nas paredes, e uma reprodução barata da Sibila Délfica de Michelangelo olhava para algo atrás de nós. Era então que, quando me dizia algo sobre sua infância na França distante, vendo espectros da Primeira Guerra Mundial, ou sobre episódios de sua vida mais ou menos prosaica de mecânico na aviação civil, arrancava os pelos das orelhas. A sombra do gesto era a representação teatral, em negativo disforme, de um Nosferatu catando piolhos.

Ao final das tardes, vestíamos nossos calções de banho e saíamos do mato por uma trilha. Andávamos atentos, estapeávamos pernilongos sem desviar os olhos do caminho. Não era incomum um lagarto ou uma cobra cruzar a trilha à nossa frente. Meu avô então parava, detinha-me com um calmo toque de mão. Eu me espantava de ver o velho narigudo esperar uma jararaca seguir seu destino como se estivesse na Avenida Paulista aguardando o sinal para pedestres deixá-lo ir para o trabalho.

A trilha se abria, o rastilho branco das cristas das ondas expandia nosso olhar. Atravessávamos a faixa de areia. Eu admirava seu corpo ainda atlético dourado pelo sol poente, apesar de um peso qualquer na barriga que lhe absorvia, discreto e sinistro, as formas tristemente fortes. Entrávamos na água. Imitava-lhe a fleuma, confiante, embora tudo dentro e fora de mim rugisse. E Leon e eu nadávamos, olhando-nos, nas pausas de um esforço medido para nos manter à tona, como amigos que se reconhecem, brevemente ridentes, nas flutuações do abismo.

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