Os dois lados da janela

Cigarro na mão em que apoia o queixo, Rute acompanha as notícias sobre o coronavírus na tevê. Na rua quase vazia, que observo pela janela, os telhados despontam ao sol matutino, parecem ilhas num mar sinistramente imóvel. A jornalista da RTP avisa que o Parlamento pode votar estado de emergência amanhã. Depois, que as farmácias estão atendendo por postigo ou à porta. “Por postigo ou à porta”, repito baixinho, com sotaque português. Muito devagar, um casal de velhinhos bem arrumados desce a Travessa da Queimada. A corcunda dele o obriga a erguer a cabeça para olhar em frente. Ignoram o perigo? Ou caminhariam assim até mesmo entre os fumos do apocalipse?

– Está tudo muito estranho – diz Rute antes da tragada funda. Vejo duas telinhas azuis em seus óculos.

Estamos há cinco dias em casa. Já limpamos o apartamento todo. Eu arrumei os livros na estante; ela lavou as cortinas, tapetinhos, capas de almofadas. Às vezes avanço num romance de Vitorino Nemésio, às vezes numa antologia poética de neo-realistas portugueses. Me deito no sofá. Sento na poltrona azul. Diante da mesa da cozinha, insisto na desconfortável cadeirinha de plástico.

Ficamos horas na cama, ela e eu. Dormimos, transamos, fumamos. Contamos histórias de nossas vidas e falamos da vida alheia, sem a inquietação dos compromissos externos – exceto esperar que, lá fora, o hálito da morte volte à sua exalação normal.

Ligo para os meus filhos, que estão com a mãe deles em Carcavelos. Também já não saem de casa, mas parecem felizes. Minha filha faz lições via classroom, os meninos brincam de lego. Hoje passearam um pouco em volta da quadra. Perguntam quando irei vê-los. Digo que não posso pegar o comboio nem o Uber, mas talvez consiga um carro. Desligo, satisfeito com o vigor tranquilo das crianças.

Então digo a Rute que precisamos de pão, carne e batatas. Macarrão. Seria bom peixe.

– Se decretarem o estado de emergência, a gente não vai poder sair.

Ela concorda com os olhos fixos na tevê. Tira os óculos, esfrega os olhos:

– Definitivamente estamos numa época de aversão ao ser humano. Só agora percebo o quanto nos tocávamos, o quanto estávamos próximos.

Saímos para ir ao Minipreço do Poço dos Negros, que é maior e costuma ter menos gente. Rute envolveu a cabeça numa echarpe, deixando só os olhos de fora. Eu me cobri com o capuz do casaco.

Um vento frio corta as ruas ensolaradas e semidesertas. Quando vem alguém no sentido contrário, tentamos manter a naturalidade, mas mudamos de calçada. Os outros fazem o mesmo, numa dança de evitações conduzida pelo vírus. Eu tusso, Rute se afasta com os olhos arregalados, ri. Era deboche…

Numa esquina, a aparição súbita de um pai com sua filhinha nos assombra. Eles passam muito perto de nós; a menina, saltitante, roça minhas pernas. Rute e eu nos entreolhamos, consternados. É terrível ver uma criança como um corvo de Poe.

Perto do Minipreço, percebemos que há uma fila diante da porta. Estão controlando o número de pessoas que entram no supermercado. Com as sacolas vazias nas mãos, estacamos. Por um momento também ficamos vazios, aparvalhados e vazios. Constrangimento de se esquivar de seres humanos, medo, necessidade de comer – não sabemos o que fazer. Enfim, ela põe de leve a mão no meu ombro:

– Podemos comprar pela internet, como a tua amiga fez. Eles entregam na porta, não entram em casa. Se calhar não é preciso tocar no dinheiro, paga-se com o multibanco.   

Resolvemos voltar. O vento frio provoca em mim uma ligeira dor de cabeça; a morbidez da imaginação, contaminada pelo vírus, me faz pensar que essa dor é um sintoma do pior. A mesma morbidez me leva a perguntar se eu ofegava assim antes, ao subir as ladeiras do Bairro Alto. Não tenho certeza, acredito que sim.

Nossos passos são lentos, carregamos nas sacolas o peso imponderável de um mundo doente.

Entramos em casa aliviados (embora não seja impossível que tenha entrado conosco o inimigo invisível). Rute liga de novo a tevê, quer saber se fecharam as fronteiras do país. Surge a propaganda de um carro elétrico de luxo. Falo a ela sobre o nonsense daquilo, oferecerem carros para meia dúzia de ricos num cenário de peste. “Esse egoísmo”, escreveu-me ontem o poeta angolano, “essa indiferença pelo outro nos isolou, muito antes do coronavírus…” As notícias voltam, já fecharam a fronteira com a Espanha. A União Europeia quer fechar todos os países.

Rute divide a atenção entre as notícias e o celular. Eu me deito no sofá, acendo um cigarro. Isso vai durar. Sempre quis que as pessoas parassem de correr, produzir, consumir, empobrecer o mundo com suas mesquinhas ambições. Sempre quis que olhassem para dentro de si e de lá tirassem algo mais valioso do que trabalhar, vencer.

Agora tenho medo que enlouqueçam.

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima