O tio

Antigamente, o tio imbecil a que quase todos estamos condenados aparecia uma vez por mês, aos domingos. Lá vinha ele na variant azul-calcinha, cheio de si, trazendo a tia e os primos, um enorme “Ame-o ou deixe-o” adesivado no vidro traseiro e o bonequinho do Pelé pendurado no retrovisor. Mal chegava já dava tapas na bunda da nossa irmã adolescente, tratando-a como criança para disfarçar a tara. Em pouco tempo tinha chamado nosso irmão mais calado de bambi e nosso pai de frouxo, enquanto ensinava golpes de caratê aos meninos; entrava na cozinha e, dando tapinhas nas costas esfalfadas da mãe da gente, gritava para a tia lá na sala que ela era a segunda melhor cozinheira do mundo. Ao menor pretexto para exibir sua “sabedoria” política, elogiava os milicos, que estavam dando um jeito na negaiada. Batia a mão com a aliança grossa na mesa:

“Isso aqui é Brasil! É lugar de gente decente. Lugar de comunista vagabundo é na cadeia”.

Na hora do almoço, uma coxa de galinha nas mãos e a boca lambuzada de molho, contava piadas obscenas, preconceituosas e inacreditavelmente sem graça. Todos riam um riso curto, sem olhar muito pra ele; as mulheres se levantavam rapidinho para buscar uma travessa no forno ou um talher que faltava.

Passava a tarde estirado no sofá, diante da tevê, as pernas bem abertas. Às vezes ajeitava de leve a calça repuxada nas coxas, na altura do saco. Assistia futebol, Chacrinha; ia pontuando os programas com comentários tão casuais quanto agressivos.

“Negro não serve pra nada, mas se você joga uma bola no pé dele…”

“Que que você acha, mulher, da gente contratar essa chacrete pra fazer a limpeza lá em casa?”

Após o bolo com café no fim da tarde, levantava-se, assumia um ar professoral. Nos explicava que, depois de Deus, a família era a coisa mais importante do mundo. Eles viriam mais vezes, não devíamos ficar tanto tempo sem nos ver. Segurava o queixo das crianças: “Estude e trabalhe. A mente vazia é a oficina do Diabo”. Abraçava a todos como se lhes tivesse feito um favor por ter vindo. Saía na frente, fazendo com que a mulher e os filhos juntassem as coisas às pressas, corressem atrás dele. E ia embora como quem deixa saudade.

Parecia que um avestruz tinha saído da sala.

Nós achávamos, naquele tempo, que as coisas não podiam piorar. Hoje, o tio imbecil é presidente do país.

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3 comentários em “O tio”

  1. Luiz Fernando Esteche

    Ótima crônica do Pamplona. Tios assim é que não falta. Vai daí que pelo menos 30% da população se identificam com algum dos preconceitos do tio da Variant azul calcinha.

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