O sabiá

Meus pés descalços tocam a madeira morna da varanda. Sinto a leve pressão da almofada nas costas e os dedos procuram entre os fios da barba a próxima palavra. Não há pressa. Nesta casinha do Brejo tenho o que preciso: araucárias, vento, um fogão, um filtro de barro. A luz desse dia. Silêncio.

Olho o sol vibrar no soalho, nas folhas da samambaia. Quase como quem se lembra de uma outra vida, sem sofrer, me pergunto o que foi “aquilo”. É impressionante o quanto estive longe de mim, por tanto tempo. Onde estava mesmo? As coisas se passaram tão rápido, as mandíbulas da civilização me trituraram e finalmente me cuspiram aqui, aos cinquenta e poucos, com um cigarro na mão e um gato velho nos pés. Perdi a juventude, perdi os amores, gastei o dinheiro que me violentei para ganhar. Mas estou vivo. Meu peito está quente e sereno. Respiro a paz que só a derrota pode dar.

Demorei, bem mais do que gostaria, para entender que o que me separa da vida real é a realidade. A vertigem dos compromissos que o homem comum assume pensando em se firmar na vida, movido pelo medo da solidão e da pobreza, me tornaram um latifundiário de indiferenças, um serviçal do mais honrado vazio.

O sabiá pousa no galho do pinheiro. Vejo passarem por mim os escritórios em que trabalhei – são vagões de um metrô subterrâneo. Luz fria, desejos sufocados, objetivos angustiantes. Fui o passageiro dessa pressa que leva para longe de si e dos outros, através de cidades que mal vi. Enquanto eu corria atrasado para a reunião, havia um homem velho sem destino sentado na mala, na rodoviária de Brasília. Uma garota maltrapilha espargia a água do chafariz da Praça Osório, na manhã fria de Curitiba. Sob um viaduto da Marginal Pinheiros o motoboy fumava e pensava na infância longe dali. Pela janela do ônibus, a mulher gorda com o bebê nos braços olhava tristemente a Lagoa da Conceição. A vida pedia meu testemunho generoso e gratuito, pedia meu corpo, minha voz, minha alma, mas eu corria atrás de dinheiro e desse amor egoísta que se tranca entre paredes, num apartamento qualquer.

O sabiá voa. Estou aqui. Estou bem. Mas não posso deixar de perceber, sou parte das sobras desse processo industrial que usa o calor de homens e mulheres para produzir egoísmo e concentrar dinheiro. Como tantos outros, como você talvez, eu devia ter percebido: o que nos é proposto é um objetivo solitário. E um objetivo solitário é uma rua vazia, ele só nos leva a uma velhice tola e rancorosa. As pessoas estão à nossa volta, estendem os braços, elas são pobres, elas são loucas, fortes carentes divinas. Só elas dão sentido e grandeza ao que fazemos.

Eu deveria me arrepender, mas não, percebi isso em tempo de dizê-lo a você: o trabalho e a família (que os “homens de bem” acoplam como máquinas sistêmicas)  não podem ser escravos da indiferença. Enquanto agirem assim, só encontrarão a felicidade fugaz de um copo de cachaça ou de um banho na praia lotada.

A bromélia abre ali sua mandala vermelha. Tem mais histórias para me contar do que o Arco do Triunfo. Lá em cima na estrada, ao lado do barraco, dona Rosa pendura ao sol a roupa dos filhos. Ela vale mais que presidentes e ministros e senadores e juízes do Brasil. A bromélia e dona Rosa são reais. São a vida, não como a “realidade” gostaria que fossem. Secretamente, contra todas as probabilidades, a bromélia e dona Rosa irradiam a luz tênue que tanto ignorei antes de ser jogado aqui, agora, unindo meu pedaços ao mundo.

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