O quintal

Logo depois que meu pai morreu, minha mãe percebeu como era frágil a sua situação. Tinha quatro filhos, era jovem, pobre, nunca havia trabalhado. Além disso, havia problemas nos papéis do meu pai que a impediam de receber uma pensão, pelo menos a curto prazo. Na época eu estava com seis anos, não compreendia nada disso. Só sentia a tensão no ar e aguardava que me dissessem o que iríamos fazer. Porque era óbvio que algo precisava ser feito. Quase não havia comida, faltava até papel higiênico; vivíamos da bondade dos vizinhos.

Foi nessa circunstância crítica que minha avó, sem nos avisar, apareceu um dia à nossa porta. Viera de Porto Alegre a Curitiba para nos buscar. Minha mãe, que gostaria de manter a independência conquistada, teve que se render. Não ficou feliz com isso, pelo que me disse mais tarde, embora se sentisse aliviada. Sua mãe era muito autoritária e ela não queria levar aquele peso todo para os pais, que já entravam na velhice. Mas não havia outro jeito.

Alguns dias depois, estávamos em Porto Alegre. Fomos morar na casa que, vida afora, seria a única que me traria lembranças luminosas, quase fabulares. A casa da rua Arapongas, 212.

Ao contrário das nossas, sempre temporárias, precárias, caóticas, a moradia dos meus avós exalava a calma de uma família estável e bem organizada. Cada móvel, cada bibelô, cada tapete estava em harmonia com as outras coisas, em muda e decantada disciplina. Respirava-se o cheiro agradavelmente amargo do assoalho encerado e dos móveis lustrados com óleo de peroba. Tudo reluzia. Havia uma cristaleira em que flutuavam, entre espelhos, taças e cisnes de cristal; poltronas de veludo verde, com toalhinhas de crochê nos braços, voltavam-se para a mesa de centro em que um cinzeiro de vidro lilás lembrava uma medusa no fundo de águas límpidas. A dispensa era grande, as provisões (pacotes, latas, vidros de conserva) entupiam as prateleiras até o teto, de onde uma claraboia despejava luz sobre o nosso futuro.

Aos poucos a sensação anterior, de uma insinuante e constante ameaça, foi dando lugar aos movimentos mais indolentes de uma vida sem percalços. Mais tranquilo, livre para as despreocupações da infância, pude me concentrar plenamente em meus brinquedos. E comecei a procurar o melhor lugar para assentar as cidades imaginárias que eu fazia para os meus carrinhos e bonecos.

A casa, que não era muito grande, agora estava sempre cheia de gente. Meus irmãos, mais velhos, dominavam o quarto. E as mulheres viviam me enxotando da sala e da cozinha. Tudo me levava ao quintal.

Logo descobri que era um lugar perfeito, frequentado apenas por um vira-latas tristonho. Junto às cercas havia hortênsias altas como arbustos, embaixo das quais eu podia abrir estradas sinuosas contornando os caules. E quando me cansava de me arrastar pelo chão empurrando os carrinhos, virava uma tábua ou toco podre para admirar o visgo cintilante de lesmas e minhocas que se retorciam ao sol. Ou explorava o caquizeiro, uma árvore não muito alta que parecia esculpida para um menino escalar seus galhos e inventar prodígios de piratas, espiando de passagem as atividades da vizinha entre anões e cogumelos coloridos. A imaginação não carecia de elementos para se expandir. E, com uma espada de cabo de vassoura em punho, até o vira-latas eu transformava em cavalo, embora ele desse apenas dois passos antes de empacar sob o meu peso.

Numa das laterais do quintal havia uma parreira. Na ponta dos pés, alcançava as uvas que pendiam dela, doces dádivas da terra, que só me pedia em troca a oração do meu prazer. Era ali, embaixo da parreira, que gostava de ficar sentado, numa cadeira velha respingada de tinta de parede. Desse trono, assentado sobre o chão arroxeado pelas uvas que caíam, abriam o olho e apodreciam, eu ouvia chegarem os murmúrios, gritos, canções, choros e risos que vinham do interior da casa e se dissipavam entre as árvores, garantindo-me que não estava só mas não precisava fazer parte de tudo. Adorava a cadeira. Era o centro de gravidade do qual podia ver um carrossel de imagens, reais ou não, girando lentamente em torno de mim. Era o centro dessa experiência estética sem fins autorais ou lucrativos que faz de toda criança um Michelângelo liberto das pretensões da arte. (Algumas vezes fiquei em pé sobre ela e fui o maestro de uma orquestra imaginária, cujos melhores violinistas eram os galhos com seus arcos de vento.)

Foram dias belíssimos. Fugiam ao tempo do relógio; tinham um sol fixo no centro que subitamente tombava no horizonte. Era quando minha mãe me chamava da janela dos fundos. Eu ia devagar para o banho, para o jantar, para as horas aflitivas no escuro povoado de fantasmas, à espera das vagas navegações do sono e, mais além, da chegada à outra margem, onde me aguardava o lume brando, que eu não sabia eterno, daquele majestoso quintal.

Muitos outros quintais surgiram em meu caminho. O quintal do adolescente melancólico que via as pontas de enormes eucaliptos escreverem no céu sua possível carta de alforria. O quintal dos churrascos do jovem marido, frequentado por amigos ruidosos, igualmente iludidos com a grandeza que se pode alcançar através do furor banal dos dias. O quintal do homem quase velho, mais grave e sereno, em que vi se aproximarem os primeiros frios de minha substância provisória.

Mas nunca, em tempo algum, houve um quintal como aquele, na casa da rua Arapongas, 212…

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