O menino é pai do homem?

Os meninos correm pelo verde do gramado ladeira abaixo. Somem atrás de um grupo de árvores, reaparecem do outro lado. Grávidas de luz, esparsas nuvens brancas deslizam pelo azul puro do céu. Ao pé do Monsanto, longe, vejo as duas torres da ponte 25 de Abril, com seus cabos principais ondulando sobre o espelho do Tejo.

Os gritos de alegria dos meninos, a ponte delicada feito maquete, a suavidade quase impiedosa do céu e o cheiro da floresta e da terra amornadas pelo sol de primavera me dão saudades de mim. Mais precisamente do menino que, como meus filhos agora, corria pelos campos sucessivos da minha infância, nas cidades em que vivi a fase mais estética da vida. Surgem unidas por um campo absoluto, em que corro e cresço até perder-me neste adulto.

Rute me convida a sentar na grama.

– Eu sou uma desleixada, diz. Esqueço-me sempre de trazer uma toalha, sumo, vinho, comida. Como toda a gente… – e faz um gesto largo mostrando os piqueniques organizados ao redor de nós.

– Na próxima vez trazemos.

– Tu sempre dizes isso…

Lá embaixo, no plano em que a encosta onde estamos aflui, os garotos jogam frisbee.

O disco amarelo é um sol portátil que vai da mão de um para a do outro e às vezes se rebela, adeja para fora do jogo. Um sol em órbita descontrolada, brincalhão. Eles então riem, se xingam, os corpinhos elegantes na carreira, atrás do pretexto para viver intensamente a realidade inventada.

Rute se deita, apoia a cabeça na mochila. Fecha os olhos. Seus longos cabelos anelados cercam o rosto, a ilha adormecida do rosto. Acendo um cigarro. Lembro-me da máxima de Machado de Assis, “O menino é pai do homem”. Não é de Machado, recordo, é de Wordsworth. Machado se apropriou dela. Pouco importa, o menino não é o pai do homem. “Pai” carrega um peso imenso. Por exemplo, a autoria do universo. Por exemplo os martelos acolchoados do piano do patriarcado, com sua música de fundo marcial. Entendo, claro, a ironia da frase. Mas não, o menino não é o pai do homem. Não cabe um pai no menino, o relógio moral de um pai, a envelhecer o menino com as medidas herdadas de uma série infindável de garotos desfeitos. O menino – Chico lança o frisbee – é a semente que dói no homem – João finge não pegar o lançamento perfeito. A triste semente do que poderia ter sido e não foi.

O menino late dentro do homem, dilacera sua carne conformada com a liberdade perdida.

À minha esquerda uma tropa de escoteiras, vigiadas por um chefe atento e aborrecido, joga algo que não entendo, com uma bolinha vermelha de meia. Uma garota alta e forte passa pelas outras segurando a bolinha erguida no ar; o chefe bate palmas, motivador. A garota distribui seu orgulho para a equipe batendo palmas também.

De qualquer forma, penso, é a vida, sua hidrografia. O córrego translúcido e estrídulo da criança encontra o espesso, fundo mar do mundo adulto. Une-se a ele, consome-se nele.

Sem que eu percebesse, as escoteiras sumiram.

Um labrador negro cruza lento o campo até fundir-se ao plano verde.

Meus filhos vêm ofegantes e corados.

– Tô com fome. Vamos embora? – diz o mais velho.

Sinto vontade de beijá-los, ao mesmo tempo em que percebo que o objeto do meu amor é um menino afogado no tempo.

Rute recolhe nossas coisas, sonada, bonita. Sei o que os garotos querem agora. Não gosto daquela comida industrial, mas a cena me pôs generoso, disperso.

– Querem ir ao Burguer King?

Eles sorriem, ambos com as mãos na cintura.

Levanto-me, olho para a ponte tênue cruzando a impermanência das águas. De qualquer forma, é a vida. A voz cava do mar, por breve momento, ecoa o córrego estrídulo do menino.


Para ir além

Melhor que o silêncio
O círculo da vida

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