Nos braços do amor

Quando eu já ia me conformando com uma vida sem encantos, fui surpreendido pelo renascimento de um amor antigo. Era um caso esquecido, desses que ficam para trás numa sucessão desanimadora de relações frustradas. Não sabia como não havia desistido de mim para sempre, tamanha fora a minha distância. Mas o fato é que sua chama não se apagou, resistiu a todas as frívolas traições e finalmente se impôs. Agora, brilha forte no meu peito, aquece os meus pensamentos, protegida do vento por estas mãos arrependidas e dedicadas.

Embora estejamos sempre deitados, não é um amor carnal. Também não é platônico, porque um precisa da pele do outro. É um amor maduro discreto, sem excessos ou carências, algo do tipo… Desculpem, estou dando voltas. É que as pessoas apedrejam tudo que não compreendem, e duvido que aceitem esse amor incomum. Mas vá lá, pensem o que quiserem! É tão grande o que me invade que já não me importo com nada: estou apaixonado pelo meu sofá. Sim, pelo meu sofá. Novamente, definitivamente. Nada mais pode nos separar. Temos o resto da vida pela frente! Está bem, não é muito tempo, mas há de ser belo e profundo. Estou pronto para a entrega absoluta, ninguém mais ousará se meter entre eu e suas divinas almofadas.

Nosso amor começou tímido, na adolescência, quando os adultos nos afastavam a toda hora. “Vá fazer alguma coisa”, diziam, como se deitado no sofá, com um livro nas mãos, eu não estivesse fazendo nada. Tinham medo que me tornasse um vagabundo, um Zé Ninguém. Ou seja, queriam me desviar de minha mais íntima vocação, destruir um dom inato, uma carreira promissora. Coisa que o sofá, mais amoroso, mais generoso do que aqueles que me obrigavam a “ser alguém na vida”, lamentava, tomado pela amarga lembrança de outros jovens que o abandonaram e se tornaram pobres homens bem-sucedidos.

– Meu querido vagabundo… Zé Ninguém…, sussurrava ele nos meus ouvidos, envolvendo-me em seu dolce far niente.

Juntos, num enlevo crescente, meu sofá e eu exploramos a inércia. E no seio suave dela, descobrimos a leitura. Começamos com as historinhas ingênuas da Mônica, do Mickey, do Tio Patinhas. Depois, nos aventuramos por algumas narrativas mais amplas, embora ainda leves, como a impagável A Ilha do Tesouro. Então, porque alguém por acaso nos mostrou uns livros abandonados, atingimos o cume da viagem. Lá estavam, num velho armário, aquelas criaturas interessantes e perversas que transformariam tudo que não fosse literatura num deserto de banalidades: Machado, Tchekhov, Virginia Woolf, Cervantes, Eça… Demos as mãos a cada um deles (alguns, como Kafka, preferiam que apenas andássemos ao seu lado). Deixamos que nos levassem para dentro e para longe dos homens, para longe e para dentro, numa espécie de movimento hipnótico. Junto com as palavras, devorávamos as deliciosas bolachas amanteigadas de minha avó (embora, verdade seja dita, fui egoísta nesse ponto e só dei migalhas ao sofá). Às vezes largávamos bolacha e livro para render tributo à memória. Fazíamos homenagens compulsivas e convulsivas às garotas do colégio, da vizinhança, das revistas de moda de minha mãe. Mas se nem os livros nem a memória nos interessavam, arquitetávamos vinganças, praticávamos heroísmos, ficávamos famosos, nadávamos na glória, tudo sem mover uma palha, o que trazia a enorme vantagem de não atrair desastres. E quando chegávamos à quintessência do nosso affaire, passávamos os mais doces momentos nos dedicando com esmero a não fazer nada, boquiabertos, estúpidos, sublimes. As horas passavam. Eu me mexia, ele gemia. Eu dizia algo ininteligível, ele me levava como uma oferenda para o mundo dos sonhos.

Então veio a juventude. Não pude decidir, decidiram por mim: eu teria que ser alguma coisa, afinal. Alguém como eles, um engenheiro, advogado, bancário, um sujeito que pagasse impostos, tivesse filhos e comprasse casa e sepultura em suaves prestações. Pouco a pouco, meus encontros com o sofá foram se limitando aos fins de semana. A maior parte do tempo eu trabalhava e o deixava lá, desolado, entregue às moscas. Chegamos a não nos ver por longas temporadas, nos tempos em que meu envolvimento com as coisas úteis quase matou nossa imaginação. Até que, um dia, já cansado de me desperdiçar em trabalhos importantes, voltei para casa, tomei um banho para me lavar das fumaças industriais do mundo, olhei para ele:

– Não há nada lá fora, disse, jogando a toalha.

Comovido, ele percebeu que minha fase adulta finalmente havia acabado.

– Eu sei, suspirou, abrindo-me os braços.

Deixei que meu corpo se encaixasse no seu. Ficamos um dia inteiro dando vazão àquele amor represado pelas distrações embaraçosas da vida. E a partir de então já não nos desviamos mais de nosso destino comum.

Hoje, ponho os cigarros ao alcance das mãos, me deito embrulhado no velho cobertor cinzento, abro um livro e deixo as imagens fluírem no colo do meu companheiro. Sem me cobrar nada (coisa que até os amigos acabam por fazer), ele me leva mais longe e mais alto do que a porta da rua. E as patéticas, trágicas, exaustivas tramas que conheci no meu longo tempo de exílio na realidade estão ali, mas com um apuro estético que a truculência da “verdade” simplesmente desconhece. Me vejo transformado num inseto monstruoso ao acordar, me apaixono constrangido por Diadorim, sou Raskólnikov descendo o machado na velha usurária, mas se fecho as asas do livro, pouso no sofá. Olho pela janela e vejo as nuvens, que são a alta literatura das emanações da lama.

Se quisesse fazer uma declaração de amor, diria que nossa relação é um filtro. Através dela, a realidade perde o seu poder cancerígeno. Ficam só os fumos inofensivos dos destinos imaginados.

So-fá, digo às vezes a ele. Duas consoantes fricativas. Dois sopros suaves no Véu de Maia.

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