Nevoeiro

Vim cabisbaixo pelo píer, seguindo a multidão. Entrei no barco. Achei um lugar entre as centenas de poltronas azuis, abri meu livro e comecei a ler. Não havia reparado em nada estranho, embora alguém tenha dito “What the fuck?!”.

Só agora, quando o barco aponta a proa para o Tejo, ergo os olhos do livro e percebo a situação. O rio está coberto por uma névoa espessa, não se vê cinquenta metros à frente. Em dois anos de idas e vindas entre o Barreiro e Lisboa, é a primeira vez que me deparo com algo assim. Não posso imaginar como o piloto vai saber o percurso. Até porque, para não encalhar o barco, ele precisa guiar-se pelas boias que sinalizam por onde deve navegar. Há muitos bancos de areia, e a correnteza muda-os de lugar, o que obriga a marinha a reposicionar constantemente a sinalização.

Mesmo assim, lentamente, o barco avança.

O piloto fica bem no alto, acima dos dois andares do catamarã. Mas não creio que veja muito melhor do que nós. Estou sentado quase à frente dos vidros da proa, é óbvio que não se pode enxergar as boias de ângulo nenhum. E se alguma outra embarcação cruzar nosso caminho, não haverá tempo para manobra. Isso deve ter um radar, penso, ligeiramente inquieto. Mas por que então vamos a passo de tartaruga? O radar não localiza coisas pequenas, canoas, boias?

Não há marinheiros no interior do barco para eu fazer perguntas. Só há o piloto, inacessível em sua alta torre de comando.

Exceto eu e um jovem africano, ninguém parece se importar com nosso destino. Estão quase todos com os olhos afundados nos celulares. O jovem, que usa uma camisa de padrão xadrez azul-marinho e bordô, afastou-se do encosto e examina apreensivo a estreita faixa de rio que vamos desvendando. Assim como eu, deve imaginar que a qualquer momento vai surgir da pálida treva o monstro de metal que nos levará a pique. Porque, sobretudo depois de Almada, no veio fundo que passa sob a ponte 25 de Abril, pesados cargueiros navegam no Tejo. Embora, nessa marcha tateante de cego, talvez nem tenhamos cruzado o Seixal.

A tranquilidade das pessoas me faz pensar que já passaram por isso. Nesse caso sabem que o piloto nunca erra, ou pelo menos nunca errou, mesmo nas piores condições climáticas. Ao contrário de mim, a maioria delas nasceu ou está há muito tempo aqui.

Mas pode ser que estejam fazendo o que sempre fazemos em nossas vidas: por preguiça, indiferença, estúpida submissão, deixamos que nos levem, não importa se para o cais ou para a morte. Aconteça o que acontecer, bastam-nos os nossos próprios problemas. Pois ao redor do mundo, neste momento, bilhões de criaturas não seguem o mesmerizado curso de suas vidas enquanto o planeta caminha para o desastre sistêmico? O mar inundará parte da terra, faltará água para beber, o Saara se expande, espécies desaparecem… que fazer? Não sabemos. Ou sabemos, no entanto não estamos no controle. Algo deu errado, sim, mas eles resolverão isso – não é possível que não resolvam.

Penetramos o nevoeiro, quietos.

O motor do barco gira em compasso contido, cavo, sinistro.

Ao meu lado, a mulher de cabelos prateados, com uma dilatada rosa tatuada no braço forte, estica as pernas e apoia a mão do celular na barriga. À esquerda, mais atrás, um casal olha embevecido seu bebê no ar, alçado pelas mãos do pai. Desvio os olhos do dois Kilimanjaros dos peitos de uma velha senhora que dorme resmungando enigmas.

Não sei quem são eles, quem são meus vizinhos de viagem; pouco pude ou busquei saber. Algo nos separou cada vez mais, e apesar de minhas explicações para o desastre iminente, mais ou menos corretas, suponho que simplesmente fui me cansando de mim mesmo, fenômeno que me fez chamar o “eu” de “nós”.

Poderia dizer que o mundo está cansado, tomado pela peste, que piorou muito devido aos crimes que cometeu, mas acho que sou eu. E desde Sófocles isso é uma tautologia.

O nevoeiro se adensa. O barco fica ainda mais cauteloso, no entanto ninguém desvia o olhar de sua tela. Quem estará no comando?, pergunta quem sabe o jovem negro da camisa xadrez, desviando os olhos do Cristo que imagino em seu colo para a mão estendida de Pietá.

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