Negacionismo sentimental

Meio da tarde. O barco está quase vazio. Poucos trabalhadores circulam nessa hora entre as margens do Tejo. Me sento bem à frente, diante das janelas da proa. Uma luz mortiça anestesia o espaço entre o rio e a massa de nuvens. A viagem não será bonita, mas não há problema: trago na mochila um romance que é puro oxigênio para a imaginação. E minhas novas meias térmicas, aliadas a este casaco de astronauta, me protegem confortavelmente do frio de inverno.

Apesar de haver lugares de sobra, a mulher se senta bem perto de mim, deixando apenas um assento entre nós. Não sei se lhe dou trinta ou quarenta anos; é magra, tem cabelos escorridos, de uma cor indecisa entre o loiro e o castanho. Entrelaça as pernas, balança impaciente os pés enfiados em botinhas pontudas. Abro meu livro, o barco se afasta do cais. Pelo canto do olho, sei que a mulher às vezes olha para mim, que cruza e descruza os braços, inquieta. Mas, aos poucos, esqueço-a, mergulho na história.

– O senhor tem um cigarro?

Olho surpreso para a minha companheira de viagem. Digo-lhe que tenho, mas não se pode fumar no barco. Ela sorri.

– É pra depois.

Pelo sotaque, sei que também é brasileira, provavelmente de Minas. Estendo-lhe o cigarro, ela fica com ele entre os dedos, bate-o na coxa. Volto à leitura, mas ela não se dá por satisfeita. Quer saber de que parte do Brasil eu sou. Informo que venho do Sul e não digo mais nada, um pouco irritado com as interrupções. Por que motivo, quando estamos lendo, as pessoas pensam que não estamos fazendo nada? Já passei por isso inúmeras vezes, em aviões, ônibus, salas de espera. É como se, em vez de um livro, eu tivesse tricô nas mãos.  

A mulher me conta que veio de Goiânia. Eu resisto, não tiro os olhos das páginas, à espera de que a criatura compreenda que não tenho duas cabeças, uma para falar, outra para ler.

– A gente veio tem três anos, eu e o Jackson.

Fecho o livro, suspiro. Examino o cigarro meio amassado entre seus dedos ansiosos. Ela deslancha: Jackson e ela se casaram em Goiânia. Andavam assustados com a violência. Vieram para Portugal com a ideia de construir suas vidas num lugar tranquilo. Ele foi trabalhar de motorista de táxi, ela conseguiu um emprego no telemarketing de uma empresa telefônica. Apalpo o livro, quase a lhe pedir socorro. Mas não há jeito, já sei que os dois, depois de um tempo na casa de amigos, conseguiram alugar um apartamento “bem bonitinho, perto da estação”. Com dois quartos, porque planejavam ter um filho. Sei que se esfalfaram como a maioria dos imigrantes, mas compraram até um belo sofá-cama, “pra quando a mãe do Jackson visitar a gente”. Já conheciam Óbidos, Costa da Caparica, Sintra. Um dia ela foi com o marido levar um passageiro até o Porto. Juntaram dinheiro suficiente para mobiliar o quarto da criança que viria.

Nesse momento ela pôs o cigarro torto no nariz, cheirou-o com o olhar perdido no rio. Estava emocionada. Me disse que tinha certeza de que ia ser uma menina e, apesar dos protestos do Jackson, decorou o quarto todo em tons de rosa. Cortinas, berço, almofadinhas, tapete, móbile, quadrinhos. Imaginei a breguice, a loucura daquilo. Se nascesse um menino, segundo os modernos conceitos de gênero, não seria problema ele viver num quarto cor-de-rosa, exceto pela monomania de um mundo ideal, expressa em cor berrante. Menino ou menina, a pobre criança nem dormiria direito.

– Sabe, a gente era unha e carne, eu e o Jackson, ela diz, e só então percebo que algo deu errado. E que já estou interessado na história, ou seja, com sua infinita capacidade de matizar neuroses, a realidade calou meu livro.

Minha companheira de viagem recorda que eles passeavam aos domingos, às vezes iam ao Monsanto, faziam piqueniques. Jackson gostava do empadão que ela fazia, “desses que não tem aqui, com frango bem picadinho”. Falavam sempre com suas famílias por vídeo, o pai dela adorava o Jackson, ela também gosta muito da mãe dele. Guardo o livro na mochila, viro-me ligeiramente para ela. “Aí veio o Natal”, ela diz. Compraram um pinheirinho, luzes piscantes, bolas coloridas. Depuseram os pacotes de presentes sob a árvore. Na tarde do dia 24, ela fez empadão, peru assado, salada. Jackson foi chamado para uma corrida no táxi, disse que já voltava. E nunca mais apareceu.

Lágrimas sobem aos seus olhos, mas ela sacode a cabeça, evita o drama. Minha curiosidade me impede de ser discreto:

– Nunca mais?

Ela faz um desolado não com a cabeça.

– Assim. Do nada. Foi embora e não voltou. Não levou nem as roupas.

Penso em dizer à moça entristecida que não foi do nada, o rapaz já vinha elaborando aquilo, claro. Não somos máquinas, nem para amar, nem para ir embora. Mas ela, no negacionismo sentimental de quem acredita numa vida plana, me mostra fotos no celular, selfies dos dois rindo, fazendo caretas, abraçados, sempre juntos e felizes. Unha e carne. Jackson, um rapaz fortinho de cabeça raspada, exibe quase sempre um riso largo de boneco e olhos esbugalhados de alegria.

– Não tem explicação… Nossa vida era perfeita.

O barco se aproxima do cais. Pergunto-lhe se não sabe onde ele está. Ela me diz que não, nem a mãe dele sabe. A menos que esteja mentindo. Deve estar, porque se não soubesse mesmo teria ficado preocupada e, no fundo, não pareceu ter ficado. Nem fala mais com ela.

Descemos a rampa do barco, atravessamos o deque em silêncio. Gostaria de saber se ela desfez o quartinho cor-de-rosa, o que pretende fazer da vida, se vai voltar para o Brasil. Talvez consolá-la, outros homens aparecerão, ela esquecerá o Jackson. Mas a moça do telemarketing se mantém firme na prestimosidade para com as vozes hostis do outro lado da linha. Sorri para mim com desvelo, pergunta se tenho fogo. Acendo-lhe o cigarro e me despeço.

Da praça em frente à estação, vejo-a lá, parada, ligando para alguém. Talvez para a Vida Perfeita, que a essa altura já mudou de número.

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