Mensagem numa garrafa

Bêbados são quase sempre inconvenientes. Podem ir de uma explosão de raiva a um surto pegajoso de amor ao próximo. Riem de coisas bestas, quebram copos e cadeiras, fazem confissões e acusações que deixam os outros constrangidos, choram como crianças desamparadas. São figuras carimbadas, no fundo aceitas pelos mecanismos repressores da sociedade, que precisam de válvulas de escape anódinas.

Ao longo dos anos, porém, conheci alguns que fugiram a esta regra. Surgiram à minha frente encharcados de álcool e, em vez de me aborrecer, subitamente iluminaram meu caminho. Embora não estejam nem de longe à sua altura, eu os vejo como herdeiros anônimos de Li Bai, o grande poeta da época de ouro da poesia chinesa, que encontrava no vinho uma espécie de janela espiritual para as mais agudas percepções. Era como se driblasse, através da bebida, a lógica desumana do poder e o senso comum que ampara essa mesma lógica.

O primeiro desses bêbados líricos veio ao meu encontro no começo da década de oitenta, quando eu tinha uns vinte anos. Já eram duas da manhã. Saí de um boteco na Avenida 7 de Setembro e fui para o ponto do expresso Santa Cândida-Capão Raso. Sentei-me no meio-fio, resignado a esperar (naquele tempo, em Curitiba, havia poucos ônibus circulando depois da meia-noite). Um homem barbudo, de paletó surrado sobre um blusão roxo de gola olímpica, aproximou-se torto de bêbado, sentou-se perto de mim. Me olhou tentando me focar, mas desistiu e permaneceu calado. Ficou ali, oscilando como a chama de uma vela. De uma boate perto de nós, saiu uma jovem de vestido tubinho preto. Subiu a avenida vazia em nossa direção, com os sapatos de salto alto nas mãos, tomando cuidado para não machucar os pés. Era alta, magra, movia com delicadeza suas formas perfeitas. De vez em quando, afastava impaciente os longos cabelos negros para trás. O bêbado e eu a vimos passar diante de nós num silêncio reverente. Ele então buscou a cumplicidade do meu olhar, deitou-se na calçada e disse, para mim ou para as estrelas:

– Às vezes eu acho melhor olhar do que pegar.

Adormeceu com a expressão beatífica de quem mergulha num profundo prazer estético.

Outra vez, o herdeiro de Li Bai surgiu num ferryboat. Foi uns dez anos depois. Eu ia atravessar a Baía de Marajó para ir a Soure, na Ilha de Marajó, a partir de Belém. O povo entrava no barco a pé, de bicicleta, moto, carro, levando cachorros, caixas e trouxas, no ritmo lento de procissão entorpecida pelo sol. No salão dos passageiros, procurei logo um lugar para ficar observando as águas, voltado para a proa. A meio da viagem, perdi o interesse pelo rio, que se transformara num mar de águas turvas. Um homem com traços de índio aproximou-se de mim. Bebia cachaça de uma garrafa plástica. Balançava ao ritmo do barco e do álcool que o inundava. Ofereceu-me a bebida, que delicadamente recusei. Então começou a me contar sua história, numa lentidão que às vezes me tornava disperso. Viera do Piauí em busca de uma mulher, com quem tivera um breve romance na juventude. Havia deixado tudo para trás, casa, esposa, filhos, emprego, só não perdera a obsessão por aquele fantasma amoroso. Ele falava sério, um pouco intrigado. Parecia tentar alcançar a razão obscura de sua busca, que certamente não se limitava àquela mulher. De repente, apontou a garrafa para o horizonte, como se oferecesse cachaça ao rio:

– Repita o que eu disse para eu ver se entendi.

Eu ri, mas ele não me deu mais atenção. Ficou hipnotizado pela imensa jiboia do rio, a deslizar por entre as margens agora invisíveis.

Em Florianópolis, na virada do ano 2000, fui ao Ribeirão da Ilha comprar ostras. Foi lá que encontrei o terceiro bêbado lírico. Eu já o conhecia. Era o seu Joaquim, um velho pescador que criava ostras numa ponta da Praia de Fora, com a ajuda de dois filhos adultos. Parei meu carro diante da casinha do velho, caminhei pelo terreno pedregoso até a praia, onde havia duas canoas, alguns balaios, uma rede estirada na areia. Podia-se ver dali, não muito longe, a armação do viveiro de ostras saindo da água. Não encontrei ninguém, decidi esperar um pouco. Fiquei admirando o canal entre a ilha e o continente, as montanhas da Serra do Tabuleiro à distância, recortadas como cartão contra o céu de um azul vago, nostálgico. Para minha surpresa, o velho emergiu de dentro de uma das canoas. Devia estar dormindo ali, porque saiu ajeitando a bermuda e o boné esfarrapado, onde estava escrito NY. Tinha os olhos vermelhos, exalava cachaça. Perguntei se havia ostras. Ele disse que sim de um jeito hesitante, como se tentasse se lembrar de alguma coisa. Eu quis saber onde estavam seus filhos, que não via há muito tempo. Ele disse que haviam abandonado a pesca, agora se dedicavam a uma pousada no Pântano do Sul. O turismo e os barcos grandes estavam acabando com a pesca dos pequenos, lamentou-se o velho. Ajudei-o a empurrar a canoa para a água. Reparei no lenho antigo e duro de seu pescoço, nos pés lanhados em que um dos dedos grandes perdera a unha. Quando ele subiu na canoa, perguntei se ainda gostava de pescar. O velho deu a primeira remada, depois me olhou através de uma névoa de pinga:

– Quanto mais vezes vou pro mar, menos eu volto.

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