Maria de Lurdes

Os olhos castanhos são bolas fixas de vidro no rosto árido, sobre o qual tombam as molinhas hirsutas dos cabelos. Embora alguma sociabilidade resista num meio riso, ela parece anestesiada pelas obsessões circulares da insônia.

Num gesto secundário, deposita sobre a mesa o prato de enguias fritas com migas e me dá as costas. Fala só com Rute.

– Escolheu bem. Quer umas azeitonas?

Desde que chegamos ao restaurantezinho, não me dirige a palavra. Se digo ou pergunto algo, responde à minha companheira que, um pouco constrangida, tenta me incluir na conversa.

Xenofobia, penso, esse miasma do colonialismo que, aqui e ali, ainda empesta as relações deles com imigrantes das ex-colônias. Sobretudo com negros, pobres e mulheres. Se você for negro, pobre e mulher é como se andasse com um pontinho vermelho de sniper balançando na testa. Mesmo não tendo nenhuma dessas características, sou brasileiro, afinal; Rute é portuguesa.

Ou seria algo pessoal? Um desgosto inconfessável que tenho por nossa tola humanidade que, com faro simples, ela adivinha e rejeita?

Na mesa ao lado, porém, a mulher de olhos de cristal castanho faz a mesma coisa com um casal de portugueses: recusa-se a falar com o homem. Chega a pousar a mão no ombro da mulher, segredar-lhe algo.

Tento me concentrar nas enguias. Talvez em função do mal-estar, acho-as secas, um tanto agressivas. Também me aborrece a tevê ligada à minha frente. Não consigo não olhar para ela. Os assuntos do telejornal da RTP se intrometem como farpas da sociedade em minha conversa com Rute.

Há um força centrífuga em toda parte, acelerada pelo tilintar dos talheres e celulares ao lado dos pratos.

O primeiro-ministro anuncia novas medidas contra o aumento do número de casos de Covid-19. Teremos que ficar em casa das treze horas de sábado às seis de domingo. Comerciantes esbravejam na tevê. Uma garotinha perto de mim fala alto com sua avó, corre continuamente pelo restaurante atrás de um cão ou gato imaginário. Entre o primeiro-ministro, a garotinha barulhenta e a enguia-seca, converso com Rute sobre nossa anfitriã.

– Aqui há um problema, diz ela. Aqui há uma história. Ela chateou-te?

Explico-lhe (tentando explicar a mim) que a mulher dos olhos vidrados inverte os sinais: me faz provar a indiferença que o mundo feminino recebe em troca de doçura, sexo, procriação e servilismo. A solidão ressentida de quem não está no poder e, invisível, acena para primatas altivos, num inútil esforço de vindicação de seu corpo, de sua existência.

Terminamos o jarro de vinho verde de pressão. Pedimos a conta. Novamente a mulher inverte os sinais, entregando a conta para Rute.

Ouço o gemido do macho ferido vazar de um velho e viciado descuido em minha trama de críticas ao patriarcado. Cogito pegar a conta, mas sei que agora sou examinado por quatro olhos (quatro mil) relegados à sombra, oniscientes.

Rute me diz quanto cada um deve pagar.

– Para algumas coisas eles têm que servir, diz a mulher a ela.

Então fala algo ao seu ouvido. As duas vão ao balcão. Me dirijo à porta, onde aguardo Rute. Saímos do restaurante. Respiramos lá fora a brisa do Tejo. Mas a mulher vem atrás de mim:

– E nem diz boa noite?

– Você nem fala comigo!, digo, subitamente liberado pela pressão do “vinho”. Você tem algum problema com os homens?

Ela põe a mão nas molinhas hirsutas. Ergue-as. A sinuosidade repulsiva de uma cicatriz, uma fenda horrível, estende-se de sua têmpora à nuca, recoberta por cabelos ralos.

– Está a ver? Esta cova daqui aqui? O meu marido tentou matar-me.

Pergunto-lhe onde ele está.

– Está preso, graças a Deus. Condenado a sete anos.

– E quando ele sair?, diz Rute.

– Olha, filha, quando ele sair logo se vê. Seja o que Deus quiser.

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