Lavanderia Roupa Feliz

Subo a avenida deserta carregando duas sacolas de roupa suja. Da esquina à minha frente, brotam uma mulher e sua filhinha, ambas de máscara preta. Vêm em minha direção… Nunca vi as pessoas na rua como as vejo agora. São obstáculos de que devo desviar. Vou para a extremidade da calçada, junto ao meio-fio. É pouco, salto para o asfalto. Não olho para as duas quando passam por mim, por vergonha de meu comportamento profilático, de meu medo de morrer.

Faz um dia cinzento, frio, o vento escarnece do meu andar ofendido.

A lavanderia está quase vazia, um casal de velhos ao fundo. Entro empurrando a porta com o cotovelo. Escolho a primeira máquina, a mais distante do casal. Enfio as roupas nela, só então lembro que primeiro tenho de ir ao controle digital. Vou lá, seleciono Máquina 1, coloco as moedas na fenda do cofre; ouço o tilintar da alegria do empresário lá no fundo.

Suspiro sob a máscara, meio cansado de tudo.

Volto à Máquina 1, fecho a porta e o aparelho começa a ruminar minha sujidade. Sento-me numa das cadeiras dispostas rente à parede e fico olhando, através do visor, as minhas roupas serem lavadas com tão pouca água que apenas escurecem.

Tudo mudou tanto. As lavadoras de antigamente lavavam com água e produziam espuma espessa. Faziam um barulho assustador, às vezes tinham ataques epilépticos e saltitavam pelo chão. Dentro delas as roupas pareciam aqueles surfistas engolidos pelas big waves do Havaí. Eram cavalas mecânicas que, resistindo aos anos, enferrujavam lentamente sob os humores humanos, até morrerem de incontornável obsolescência. Esta aqui gira num silêncio vácuo, de ficção científica, muito lógica na face de aço. E será substituída, quando perder essa fleuma, sem que eu perceba, ao contrário das máquinas de antigamente, cujo fim suscitava eflúvios de luto.

Definitivamente, estou ficando velho.

Não tenho paciência, por exemplo, para o excesso estúpido de cuidado daquela jovem angolana de moletom grudado na bunda esférica. Ela passa álcool gel na máquina que vai usar, borrifando a coisa à distância, como se o vírus da Covid fosse uma aranha. Tão grave quanto minha reação a ela é o fato de eu não a ter visto entrar…

Então chegam uma mulher cheia de certezas, de franja cortada à Cleópatra, e um homenzarrão de toca atravessada na cabeça, que parece borderline. O homenzarrão usa muletas, mas talvez não precise delas. Ele tenta acionar a máquina de café e não sabe por que ela engoliu seu dinheiro e está muda. Pergunta, sem olhar para alguém em especial, o que aconteceu. Ninguém responde. Vou até lá e percebo que ele não fez uma escolha, café curto, longo, capuccino etc.

– O que você quer beber?

Quer café curto. Aperto o botão e o homenzarrão, uma criança, sequer agradece: olha firme para o fio que enche o copo de plástico.

Atrás de mim, a velha senhora tenta abrir à força a porta da máquina onde lavou seu cobertor. O marido, um exaurido trabalhador da construção civil, manchado de pó de tijolo e caliça, sequer olha para ela, num mau humor que pode ser constrangimento de classe. Para “ajudá-la”, a mulher da franja dominadora acusa-a de ter estragado a máquina por querer abri-la antes do fim da operação. Também puxa a porta, sem sucesso. A angolana se aproxima, dá um tranco vitorioso na porta.

­– Às vezes é preciso forçar, diz ela, dando as costas para as outras.

Nem tudo aqui parece ficção científica, penso.

A mulher de franja dominadora esconde o despeito, senta-se ao meu lado e olha para o celular fingindo indiferença – mas dá um tapinha nervoso nas pontas do cabelo.

O homem de muletas inúteis pergunta se alguém ali é do Barreiro. A velha senhora entende mal:

– Sou alentejana.

A angolana diz que sim, é do Barreiro. O homem pergunta-lhe se sabe de algum apartamento barato para alugar. Ela responde que não, mas, por gentileza, anota o telefone do homem.

– Se eu souber de algo…

Ele então abre sua pasta de couro e tira de lá uns impressos, em que diz que procura um T1. Estende-os para a angolana, que perde a paciência:

– Desculpe lá, não me leve a mal, tá bem? Mas eu não vou tocar nesses papéis com as minhas mãos. Guarde lá isso, não me leve a mal.

A Máquina 1 libera a porta. Recolho as roupas e saio da lavanderia, exausto, aliviado.

Desço a avenida sem vontade de ir para casa, mas não há o que fazer, literalmente. Entretanto, embora o confinamento me dê saudades das pessoas, quando as encontro me vejo como as máquinas tomadas pela ferrugem de minha infância, já à beira da incontornável obsolescência.


Para ir além

Conversa com o dachshund

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