Lampião no carrossel

Diante da janela ensolarada, tomamos café da manhã. A primavera chegou, a temperatura está agradável e usamos roupas mais leves. A porta aberta para o terraço deixa entrar uma brisa amena. Rute vê algo no celular, prepara um pão com queijo e doce de abóbora. Eu viro a página do livro que estou lendo, Capitães da Areia. Leio a descrição de uma cena espantosa, que me faz sorrir de admiração. A cena me dá vontade de fumar. Sempre que leio algo potente, acendo um cigarro para pensar no mecanismo verbal que produziu tal efeito, nos ecos semânticos, fruindo uma intimidade cariciosa com o texto após o fulgor da primeira leitura.

O maço de cigarros, porém, está vazio.

– Não há mais tabaco, diz Rute. Podes ir buscar?

Releio o trecho epifânico, termino o café. Visto os tênis, a máscara, dou um beijo em Rute.

Há mais gente na rua agora. Algumas pessoas conversam desatentas, sem máscaras. É que, depois de um ano de confinamento, com o avanço da vacinação e menos casos de Covid-19, até mesmo a polícia relaxou. E o sol, as flores, a brisa, tudo chama para fora, para os outros, para a velha e boa vida das conversas nas esquinas, nos mercados e cafés fervilhantes, nos bancos de praça onde se costuram sem pressa os retalhos da vida alheia.

Entro no fluxo das criaturas redivivas, desviando-me delas quando posso, quando não esqueço que posso. Pela primeira vez em meses ouço uma gargalhada, vinda de algum dos apartamentos acima de mim. Uma gargalhada boa, natural, tive até a impressão de que alargou meu peito, acostumado às contrições da pandemia e do frio.

Chego à banca de jornal, a do homenzinho que está sempre na penumbra com a barba por fazer, de olhos macerados um pouco vermelhos. Peço-lhe dois maços de Português soft. Enquanto ele os providencia, vejo de relance os livros usados que pôs à venda entre as revistas. Em meio a porcarias industriais, há alguns bons, Mikhail Bulgakov, Naguib Mahfouz, Wole Soyinka. Pergunto quanto custam.

– Dois euros.

Lembro-me de umas obras que tenho em casa e não vou ler.

– O senhor compra livros usados?

Ele subitamente fica apressado, me entrega os cigarros, pega o dinheiro, olha para o próximo cliente atrás de mim:

– Tenho carradas disso na arrecadação. E as pessoas não compram…

Quinze minutos depois estou à beira do Tejo. Encontro um banco vazio perto da estação de barcos. Sento-me ali, meio zonzo, as palavras do homenzinho a rondar minha cabeça.

Tenho carradas disso, tenho carradas disso, tenho carradas disso…

Um pequeno veleiro singra o rio malemolente. Dentro de mim a engrenagem mental mói velhas ilusões: tenho carradas disso, tenho carradas disso… O depósito do homenzinho está cheio “disso”, as bibliotecas, livrarias, todas abarrotadas “disso”.

Tento conceber os livros, que tanto admirei ao longo de mais de quarenta anos, como pesos de papel, revistas abandonadas por falta de imagens, inúteis caixas de palavras desprovidas de valor. Aquele homenzinho, sem as afetações de conhecimento da classe média, sofrido, iletrado, pragmático, deu nome aos bois: um livro, para a maioria de nós, é “isso”. Um isso, ó Dante esquecido no Inferno, visto de diferentes perspectivas.

Uma parte da sociedade fica incomodada com a existência dele, do Livro, aquela que vê no conhecimento um dos degraus possíveis para ascender ao segundo andar. Esta lê um “isso” aqui, outro ali, até chegar lá e poder abandonar todos os incômodos “issos”. Outra parte, a que está condenada a trabalhos mal pagos, como o nosso homenzinho, esta passa a vida vendo os “issos” como coisa excêntrica de gente ociosa, estudada, rica. E a gente rica coloca os livros na sala, ao lado de quadros e estatuetas, compondo com “issos” seu arcaico brasão.

Ajeito-me no banco, acendo um cigarro. Lembro-me do Capitães da Areia.

No trecho a que me referi do livro de Jorge Amado, Nhozinho França, empresário decadente que vive de um carrossel velho e descorado, está numa pobre vila do sertão da Bahia. Já havia percorrido os estados de Alagoas e Sergipe, já tivera ao lado do carrossel uma roda-gigante e uma sombrinha, que outros chamam de chapéu mexicano. Ganhara dinheiro com crianças ricas, “vestidas de marinheiro ou de pequeno lorde inglês, as meninas de holandesas ou de finos vestidos de seda”. As mulheres então eram belas, os homens bons com ele. Mas a bebida tornava tudo mais bonito, e Nhozinho “bebeu primeiro a sombrinha, depois a roda-gigante”. Agora, empobrecido, endividado, ele aguarda a noite de sábado e a tarde de domingo, para ver se ganha algum e vai embora daquele fim de mundo. Mas na sexta-feira Lampião entra na vila seguido de vinte e dois homens. Os cangaceiros, brutalhões “com vinte e trinta mortes nas costas”, acham belo o carrossel, contemplam maravilhados suas luzes rodando, ao som de uma velha música de pianola. Esquecem de saquaear, matar, estuprar: montam nos cavalinhos estropiados e gozam uma felicidade inaudita, uma alegria de meninos grandes jamais sonhada em suas vidas de camponeses.

Os livros podem ser este carrossel, me diz ali a orla. Podem, embora nem sempre o façam, libertar as pessoas de sua mísera cangalha cotidiana e torná-las leves, flexíveis, ludicamente elevadas como os homens de Lampião. Mas estamos falando “disso”, do que cravou no vazio o homem da banca de jornais. E se amanhã ou depois as pessoas se verão livres da pandemia, felizes de retomar suas vidas, me entristece pensar que não abandonarão este outro confinamento: o dos que não provam a primavera das palavras que cortam a realidade e a expandem, do entendimento que percorre o mistério dolorido de outras vidas e se humaniza. Me entristece pensar que jamais provarão disso.


Para ir além

Os lábios de Cyndi

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