FRANCISCO

Chico espanta um bando de gaivotas: elas salpicam de branco o azul da foto que Rute faz.

Segue solto à nossa frente, afundando os pés na língua de areia. De repente, corre magrinho rumo ao esmeril de luz dos reflexos do sol nas águas do Tejo, até chegar à ponta da língua.

Caminhamos, Rute e eu, ao encontro do menino. Juntos, somos três silêncios que se alongam sobre as águas verdes, serenas. Rute, pássara, atenta às possibilidades fluidas do instante, braços feito asas a envolver os joelhos, se senta na areia. Seu olhar pousa em Chico, que anda devagar pela orla, a observar caranguejos, peixes, moluscos, outros seres delicados que se movem no líquido vítreo.

A luz à minha volta se expande para dentro da matéria. Me sinto cercado pelos deuses. Súbito, me sorvem, sou parte deles, no sopro para fora que é um regressar a si, fundamente.

Longe, um barco de passageiros passa em direção a Montijo e eclipsa o devaneio. Não posso ouvir seus motores vorazes, não vejo a carga soturna, parece inocente brinquedo movido a vento.

– Pai!

Dou-lhe a mão, tenteando mais uma vez a realidade. Caminhamos para dentro do rio até ele ficar com água pelo peito. Nadamos mais para o fundo, lado a lado. Lembro que, há meio século, do outro lado do Atlântico, meu avô Leon nadava assim comigo. É como se, sempre a nadar por rios e mares, os corpos se transmutassem: o velho some, surge um menino; o que era menino bruscamente envelhece…

Com cautela, verifico se ainda dá pé para mim. Consigo tocar a areia, Chico sobe em minhas costas.

– Vamos mergulhar pra gente se ver lá embaixo?

Largo-o na água, me afasto um pouco. Mergulhamos. Seus cabelos dançam como algas, libera pérolas de ar e sobe.

Voltamos. Vejo a silhueta esguia de Rute desaparecendo na curva da praia. Ela gosta de andar sozinha, observar, a esmo, a espuma dos dias.

Gotas estremecidas pela brisa escorrem por meu corpo, acordam a consciência da pele.

Com uma varinha, Chico desenha na areia um enorme círculo e, dentro dele, o seu nome.

Me distraio olhando para os lados de Lisboa, “Lá deve ser Xabregas”. Me volto e Chico também sumiu, atrás da concavidade da língua de areia. Estou só, mas não: linhas finas e distensas de amor me unem ao menino que brinca além, à mulher que deambula invisível. Não há mal. Cala-se a máquina de necessidades e desejos; suas engrenagens, gastas pela nata de graxa velha e poeirenta, desprendem-se, encontrando a doce liberdade de girar em vão.

Caminho em torno da palavra FRANCISCO, no centro do círculo irregular, de menino sem compasso mental, que vê numes em nomes escritos com letras de diferentes tamanhos. A beleza do imperfeito, destruída nas escolas várias e tristes que levam um homem a chegar à velhice com horror do erro, todo errado – a beleza do imperfeito emana ali a imortalidade do que jamais se autodefine.

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