Feliz Natal, meu amigo

21 de dezembro

Ergo o pano de prato que cobre a travessa: me envolve o cheiro agridoce do vinha-d’alho. A carne do coelho, de um rosa suave, já está tingida pelo tinto, bem curtida pelo tempero. Já posso assá-la.

O telefone toca. Juliana me liga do Brasil. Ponho o aparelho no viva-voz e deixo-o sobre a pia. Acendendo o forno, pergunto como vão as coisas. Ela me diz que está tudo bem, mas anda irritada com “Dona Marlene”. Pelo meu silêncio, percebe que não disse nenhuma novidade. Juliana está sempre irritada com sua mãe. Coloco a travessa no forno. Ela pede desculpas por bater na mesma tecla, mas as coisas pioraram, precisava falar com alguém. Agradeço por ter sido o escolhido, ela ri.

– É que agora, nessa época do Natal, a mãe fica insuportável. Você não imagina quantas vezes a criatura me liga todo santo dia, há mais de um mês! Só pra me falar sobre o que vai fazer na ceia, sobre dar esse presente ou aquele, sobre o cretino do meu irmão que vai passar o Natal de novo com a família da minha cunhada… Eu lá me importo se a gente vai comer pernil ou peru? Se é melhor dar um scrapbook ou um perfume de toranja pra minha sobrinha, que já tem tudo? E não é bom que meu irmão fique lá com a família da outra, em vez de vir azedar o Natal da gente? Ele sempre reclama de tudo, odeia a nossa família.

Fico sabendo que, na última semana, Marlene limpou a casa obsessivamente. Lavou cortinas, edredons, a capa dos sofás. Areou panelas; passou Easy Off no forno; jogou revistas no lixo; deu roupas velhas para o porteiro. De joelhos, removeu com uma escova de dentes as sujeiras mais renitentes do box. Chamou um encanador para consertar um antigo e torturante vazamento na torneira da cozinha. O apartamento já estava tinindo quando soube que seu marido, forte como um touro, havia contraído a Covid-19. Ficou confusa. Devia lamentar a doença, mas estava era indignada com o fato de que seu esforço fora em vão, não haveria festa. Minha amiga se exalta, elétrica:

– Mas que festa? Eu ter que andar uma hora de carro pra buscar a tia e a vó, a mãe não parar quieta um segundo até a gente desembrulhar os presentes e ir pra mesa, elas brigarem por qualquer coisa besta enquanto a gente engole a porra do pernil ou do peru? E depois eu ter que levar as velhinhas embirradas de volta pra casa, sem ter bebido quase nada, porque vou dirigir?

Ela tosse. Procuro uma faca afiada.

– Confesso que me senti profundamente aliviada com essa história da Covid. Até porque o Ney já está vacinado, nem teve sintomas. Deus me perdoe, mas o vírus dele foi o melhor presente de Natal.

Descasco batatas, pensando em escrever um conto sobre o que ela me diz. A doença como dádiva. O perigo de contágio como bolha de proteção. Quem sabe o conto de um homem bronco, isolado em seu quarto, feliz por se ver livre da vida que ele mesmo construiu. Temendo o retorno da saúde, da liberdade do corpo cego em que obedientemente se perdeu.

23 de dezembro

Na loja de brinquedos abarrotada de gente, finalmente consigo encontrar o tal Naruto Uchiha Sasuke. Só resta um, pego sem hesitar. Para um bonequinho de plástico de quinze centímetros, é caríssimo, mas vou decidido ao caixa, pago aliviado: era o último presente que faltava comprar.

O celular toca. Juliana. Digo-lhe que já ligo. Desço as escadas rolantes do shopping, ligeiramente nauseado pela imersão na matilha de consumidores febris.

Ando duas quadras, encontro um café com uma esplanada quase vazia. Peço café duplo e pastel de nata, me sento, instalo os headphones no celular. Ligo para minha velha amiga. Ela está abatida.

– O Ney me pediu pra falar comigo.

– Ele não devia ficar em isolamento?

– Falou pra gente se encontrar ao ar livre, numa pracinha perto daqui. De máscara, guardando distância e tal.

– Você vai?

– Já fui. Agora há pouco. Se não fosse ia morrer de curiosidade. Nesses quinze, dezesseis anos que ele está com a mãe só me chamou pra conversar umas duas ou três vezes.

– E o que é que ele queria.

– Disse que não aguenta mais o mau humor da Dona Marlene. Ela também testou positivo, não pode sair de casa. Ficou maluquinha da silva. O Ney estava de mala e cuia, vai passar o Natal no antigo apartamento dele.

– Sua mãe vai pular do prédio.

– Quem dera.

– Sério, você precisa fazer alguma coisa.

– Minha mãe nunca soube ficar sozinha, mas também não sabe ficar bem com os outros. Sinceramente, estou cansada… Por que nos obrigam a isso, Marcolino? Família, Natal? Essa felicidade imposta… É horrível!

26 de dezembro

Caminho à beira mar, na ponta de pedra do farol de Sesimbra. O vento frio arrasta nuvens turvas sobre águas crespas. Aos gritos, as gaivotas parecem mais agitadas, mais selvagens. Um homem, em pé num barco minúsculo, enfrenta o mau tempo com essa obstinação milenar que desanima as Fúrias.

O Natal passou, sinto a nostalgia de algo que não houve. Não seríamos um só, de mãos dadas, em torno da chama serena do afeto comum? O sininho tibetano de uma mensagem me tira do devaneio. Com a mão enregelada, pego o celular no bolso. É Juliana.

“O Ney voltou pra casa na noite de Natal. Minha mãe chorou muito, coitada. Hoje me mandou doze fotos do colarzinho que ele deu pra ela. Esqueci de dizer, apesar de tudo, Feliz Natal, meu amigo!”

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