Entre dólares e drogas

Na volta de um encontro de poetas em Viseu, resolvi conhecer Piódão, a aldeia histórica que muitos consideram a mais bonita de Portugal. Se é a mais bonita não sei dizer, não conheço todas. Mas fiquei deslumbrado com as casinhas de pedra escura, engastadas como joias da obstinação humana numa encosta da Serra do Açor. Depois de subir e descer por suas vielas silenciosas, imaginando como os agricultores pobres viviam ali em tempos mais agrestes, resolvi descansar num pequeno restaurante ao pé da Igreja Matriz. Perto de mim, um casal de jovens ingleses conversava calmamente. Eu quase não ouvia o que eles diziam, mas de repente uma frase da moça saltou, nítida, no ar: “He took a while to have a body” (aproximadamente: ele demorou a ter um corpo). Podia ser o verso de um poema. Vejam só, pensei: a poesia fugiu de nosso encontro de vaidades em Viseu para surgir ali, disfarçada de banalidade, entres as mesas de um restaurantezinho turístico.

A caminho de Lisboa, dirigindo devagar pela estrada sinuosa da serra, lembrei de um publicitário que conheci no Rio de Janeiro há muitos anos. Era um sujeito magro, cabeludo, com rugas fundas na testa e nas têmporas. Quando ria, exibia uns dentes estragados que destoavam dos belos olhos azuis. Não entendi, a princípio, por que pensava nele, mas recordei que, depois de visitá-lo em sua casa durante uma viagem de trabalho, anotei no hotel o que havia contado a mim. Era mais ou menos assim:  

Esta é minha casa. Entre, por favor.

Não há nada de especial nela. Não tenho, por exemplo, um gato. Cachorro, só há aquele ali, de porcelana, que comprei não sei por que numa tarde fria e chuvosa em Amsterdã, séculos atrás. A única planta que você vai encontrar é esta samambaia. Sim, é até bonita, mas isso é dela. Eu me limito a lhe dar água de vez em quando. Como você vê, os móveis são simples e baratos. A luminária de papel foi ideia da minha companheira. Na fruteira não costumo ter mais do que estas três bananas escurecidas e a laranja quase murcha, porque só como fruta quando me obrigo. Os temperos são esses aí, em saquinhos de supermercado. Tenho sempre azeite de oliva, café, pão, manteiga e queijo, isso nunca falta. O resto são umas poucas carnes congeladas e duas ou três verduras, às vezes uma sobra de comida num tupperware. Faço pratos simples, mas cozinho todo dia, com algum prazer, eu diria. Gosto de descansar das preocupações picando cebolas e tomates, o ritual me tranquiliza. E depois, sim, há os livros, nessas estantes que eu mesmo montei. É uma madeira clarinha, barata, mas resistente. Tem o seu charme, você não acha? Não, você não acha. Exagerou no elogio. Por favor, não precisa se justificar, eu sei que não há nada demais aqui. Só disse que a madeira é charmosa porque acho isso tudo um luxo, até os dois quadros com reproduções ordinárias de pintores óbvios. Até a cadeira de escritório de couro sintético já meio rasgado (eu sei, ela não tem nada a ver com a mesinha redonda). Mas é um luxo, sim, essa casa é um primor. Pra mim é o melhor lugar do mundo. Tudo aqui me parece muito agradável. Claro, isso soa estranho pra você, a casa é de uma simplicidade que beira a carência. Mas vou lhe explicar melhor porque o fato de eu estar aqui representa pra mim um raro requinte. E vou fazer isso dizendo-lhe tudo que deixei lá fora. A tranqueira que larguei pelo caminho.

Foram anos e anos me esmerando em perder coisas. Não é fácil isso, somos criaturas acumuladoras, treinadas para adquirir, “progredir”. Mas, aos poucos, aprendi a perder. Primeiro, perdi a vontade de trabalhar como um louco. Tinha muito dinheiro nessa época, havia ganhado prêmios internacionais, era diretor de criação de uma grande agência. Mas já não via sentido naquilo. Me sentia vazio como a casa suntuosa em que só passava as noites e os fins de semana, quase sempre exausto. Pedi a conta na agência, resolvi viver de trabalhinhos menores, frilas que davam para o gasto. Então, a mulher que eu tinha naquele tempo, caríssima, desapareceu. Com ela foram os meus dois filhos pequenos, a casa no condomínio chique, os muros eletrificados, os carros novos, a mobília de grife, os jantares com vinhos da mais fina cepa. Fiquei desnorteado por um tempo, mas me mantive firme na ideia de perder mais profundamente. O dinheiro encolhia. Me mudei para um lugar menor, depois para outro ainda menor, até chegar a este. Sente-se, por favor. Não tenho bebidas alcoólicas, você já vai saber o porquê. Quer um suco?

Nesse meio tempo, descobri que era possível perder coisas que eu nem sabia ter. O hábito de viajar para lugares distantes, por exemplo, em busca de uma novidade superficial que me compensasse da paisagem desoladora que trazia por dentro. Ou a mania de fazer ginástica para exibir um bem-estar que a alma, nauseada, logo obscurecia. Perdi isso também, perdi mais, perdi tanto que fiquei gordo e triste, me senti acabado, sem saída. Via muito pouco os meus filhos. E continuei perdendo. Algo em mim queria a derrota completa.

Quando cheguei ao fundo poço, só me restavam uns poucos amigos, uma mala de roupa e certa amargura que me impedia até de fazer sexo. E então o quê? Ora, tenha calma. Eu não tive, apesar de tudo? Vamos num ritmo lento, porque a vida, ao contrário da ficção, não dá saltos performáticos. Ela nos mastiga sem pressa, sem cortes de edição…

Então, meu amigo, mergulhei no álcool e nas drogas. A sociedade burguesa era uma merda, a pobreza era uma merda, o que eu fiz? Fui viver fora da realidade. Queria perder também a consciência. Passei uma década chapado, até atingir a mais absoluta falta de cuidado comigo mesmo. Andava com a roupa rasgada, suja, derrubava vinho vagabundo na barba e no peito, meus dentes apodreciam, o nariz às vezes sangrava, machucado pelo excesso de pó. A namorada viciada que eu tinha sumiu quando uma noite quebrei a casa toda ouvindo Nirvana. A ex-mulher proibiu os filhos de me verem. Eu trabalhava raramente, não sei como consegui dinheiro para viver daquele jeito, comprando o bagulho, comendo alguma coisa, pagando aluguel. Mas vivi. Por uma década. Estava magro, pálido, ia do ódio profundo pelo ser humano a uma fraternidade cósmica. Mergulhava em abismos terrestres e celestes, dava minhas roupas aos mendigos, dizia as piores coisas ao primeiro que passasse por mim.

Essa viagem pelas névoas do álcool e do ratatá durou até os meus quarenta e cinco anos. Um dia acordei de uma sessão avassaladora de maconha, pó, crack e cachaça. Olhei em volta e estranhei os despojos da minha autodestruição. Tinha um corte fundo no pé, meu braço esquerdo estava roxo. Na pia imunda, já nasciam brotos de uma batata. Havia garrafas pelo chão, um buraco negro feito a fogo no pano de prato. De repente compreendi que, desde os tempos da agência de propaganda, estava agindo como se não tivesse corpo. Usava o excesso para me apagar. O que havia me levado a fazer aquilo? Eu não sabia, mas já não era preciso. O grande porre chegara ao fim.

Resolvi parar com tudo. Não me pergunte como, mas consegui. Peguei as poucas coisas que ainda tinha (da decoração destruída só sobrou o cãozinho de porcelana) e vim para esta casa. Conheci aquela mulher tranquila que está dormindo lá no quarto; devagar ela foi ficando comigo, me trazendo para o chão, me devolvendo a mim. Primeiro trouxe os seus quadros, depois esses pratos bonitinhos de feira de antiguidade, as canecas, a luminária de papel, o velho tapete azul. Mas, como eu, ela não queria muito mais do que isso. Decidi pegar mais trabalhos, recuperei alguns amigos. Comecei a lembrar com remorso de tudo que havia feito. Era como se fosse a vida de outra pessoa, de uma não-pessoa que eu havia sido por tanto tempo.

Às vezes viajo com a companheira até onde a nossa grana alcança, às vezes ando de bicicleta. Escrevo uns versos que você não vai querer ler, mas que me fazem bem. Comprei um carro usado em bom estado, um celular que tira fotos com resolução bem razoável. Aprendi a parar em frente ao mar e ver a água tremulando, um barco, uma gaivota. A tomar café diante da janela vendo apenas o que está diante da janela, satisfeito com o que se pode ver, com o que se recebe de fora. Passo as mãos pelas pernas, pelos braços, sinto que estou vivo. Meus filhos vêm me ver, estamos relativamente próximos, embora ainda me encarem como um estranho familiar. Eu os amo muito, talvez às vezes exagere esse afeto movido pela culpa. Enfim, vou indo. É verdade que alguns dias tenho ganas de me chapar furiosamente, ou de virar o chefe rico e egoísta de uma multinacional sórdida. Mas aí me obrigo a comer uma laranja, pedalo um pouco, converso com ela. E passa.

Não lhe digo que vou ter um gato, não cheguei ao gato. Nem vou me esforçar muito para trocar a cadeira rasgada, são só dois talhos pequenos no encosto. Além do mais, quase ninguém vem aqui. Quem vem, como você, é gente boa. Há de captar a beleza dessas coisas que salvei do naufrágio.

Não, minha vida não é verossímil. Mas quando penso que não é possível que eu tenha vivido daquele jeito, olho para o cachorrinho de porcelana. Parece um bichinho ingênuo, não é? Mas ele também viu tudo. Ele também estava lá, naquela loucura, entre dólares e drogas.

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