Cutting

A fila do fast food anda mais rápido do que eu esperava. Meio irritado por ter que tomar logo uma decisão, examino de novo os vinte ingredientes, depois os cinco molhos com que posso compor meu prato de noodles. Quando chegamos ao caixa, deixo minha filha fazer seu pedido. Ela e a moça do caixa olham para mim. Tento não parecer parvo, mas ainda pergunto:

– São três ingredientes e um molho?

Quase juntas, as duas dizem que sim.

Escolho os nomes mais bonitos, camarão, rebentos de bambu, molho de ostra.

– Falta um ingrediente, diz a garota do caixa.

– Ovo, digo.

Marina me olha com expressão de asco:

– Ovo com molho de ostra?

Faço um vago sinal afirmativo.

Numa vida já saturada de escolhas (muitas delas erradas, como costuma acontecer), detesto ter que decidir até isso. Mas agora me oferecem mil opções para tudo. Não consigo comprar um biscoito sem me sentir inseguro, impotente diante das possibilidades. E para que necessito, por exemplo, de sabão com enzimas ativas, ou de 11 intensidades de café? Preciso de roupas limpas e café, apenas café, para ler em paz.

O rapaz prepara meu prato no wok sobre uma boca de onde emergem labaredas turbilhonantes. A comida gira, salta da frigideira funda, que o moço de lenço na cabeça manipula com trejeitos de malabarista. Findo o show, me estende o prato. Marina já me aguarda, a comida fumegante nas mãos.

Com hesitante elegância, disputamos uma mesinha da praça de alimentação. Marina chega antes de um homem engravatado a uma delas.

Apesar de não haver ninguém à nossa volta que vista menos de quinhentos euros, sinto-me num refeitório industrial.

Minha filha parece apreensiva. Está com o pai, este ser pesado e obsoleto de quem espera alguma empatia pelo seu mundo, que supõe insurgente. Aponto uma lanchonete de hambúrgueres veganos.

– Já reparou que para proteger os animais uma pessoa tem que ter conta na Suíça?

Ela faz sua expressão adolescente de tédio. Depois, deixa eu dar a primeira garfada. Me olha de relance. Como quem não quer nada, pergunta o que achei.

Sei que deseja minha aprovação, vim ao seu território. Mas fico tentando entender como fazem para que camarão, rebentos de bambu, ovos e noodles se autoanulem. O que está acontecendo agora com os nomes e os alimentos? Enquanto os primeiros ficam cada vez mais suculentos, os últimos se afastam lentamente da nossa memória gustativa.

– Está bom, filha.

– Bom?

– Bom, sim. Bom.

– Você não gosta de nada. Eu acho uma delícia. É o melhor noodles de Lisboa.

– Você já comeu todos os noodles de Lisboa?

– Não enche, pai.

– Isso aqui é um shopping, não se pode esperar quase nada da comida. Mas claro que eu gosto de muita coisa. A feijoada à transmontana da Tasquinha do Custódio, por exemplo.

– Acho aquilo decadente. Parece sujo. E a comida, ui!, um monte de pelanca.

– Antigo não é sujo. E o que você chama de “pelanca” é o que sobrava antigamente para os pobres. Foram os pobres que criaram os melhores pratos. Com os restos dos ricos, porque só onde tem carência é preciso imaginação. A senzala…

Marina belisca um cogumelo no prato e me interrompe:

– Pai, ouve isso! Sabe a Maria?

Finjo interesse, admirado com o viço intocado de seus cabelos ruivos, a pele fresca, sem os rabiscos do tempo, os olhos vivazes que oscilam entre a dúvida infantil e a arrogância juvenil. Diante de mim está o ímpeto sempre renovado da vida, a força cega que surge e ressurge das cinzas da civilização. Quem sabe não será a geração dela que nos libertará do laberinto de la soledad?

– A Maria se corta.

– Como assim?

– Se mutila, é assim que fala?

– “Se fala”. Por que ela faz isso?

– Sei lá!

– Já avisaram os pais, a direção da escola?

– Todo mundo sabe. Os pais tão cagando pra ela… Mas agora tem muita gente que faz isso, é moda. Tem até nome, cutting.

– Que coisa horrível. Deve ser pra chamar a atenção. Você acha que ela corre o risco de se matar?

– Claro que não.

– Você não sabe.

– A Maria não vai se matar, pai.  

– Ela se corta onde?

– No braço. Anda sempre de manga comprida.

– É a sua melhor amiga, não é?

– É. Não sei. Eu tô saindo mais com a Inês.

– E a Inês?

– É legal.

Considero a possibilidade de que o celular delas venha a ser substituído pelo estilete. Um outro tipo de suicídio consentido.

– Ela também se mutila?

Marina ri, a ponto de exibir um pouco da comida que tem na boca.

– Ai, pai! A Inês é toda certinha.

Diverte-se com a minha ignorância, não sei quem é a menina. Digo isso para ela.

– Pai… Você conheceu a Inês no Chiado. Era a mais baixa das três.

– Ah, sim, a Inês, minto. Tenho apenas a imagem difusa das garotas me cumprimentando à distância, ansiosas para falar entre si, enquanto minha filha procurava discretamente me despachar.

Ao contrário de outras vezes, ao fim do almoço Marina não mostra nem esconde nenhuma pressa. Diante dos pratos vazios, conversamos calmamente sobre qualquer coisa sem importância. Conto algo engraçado, uma piada boba; por um instante, o riso natural dela, para além do que digo, me perdoa, me acolhe. 

Esperamos o ônibus. Minha filha me dá um beijo acanhado e embarca. Olho sua figura ainda frágil e luminosa misturar-se ao turvo cardume de passageiros. Aguardo para ver se vai olhar para mim através da janela, acenar-me.

E lá está a mãozinha no ar, a flor tímida que brota do pulso tenro.

Ainda bem que não se corta.

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