Conversa com o dachshund

Imóvel no ângulo formado pela estante de livros e a parede, sentado com as quatro patas bem unidas, o dachshund me olha:

– Sobreviveremos a isso também. Eu com certeza. Você provavelmente, uma vez que fuma e bebe como um pirata e essas coisas, dizem, são uma poderosa proteção contra a Covid.

Sob a insistência do meu olhar, sua boca fina delicadamente cerrada e os olhos expectantes sorriem irônicos.

– Mas, claro, não sobreviveremos a tudo. Um dia você servirá de repasto à cegueira faminta de um piquenique de vermes. Mas parece ainda ter muito a suportar, meu amigo.

– Obrigado… – digo sem pronunciar palavra. – E ainda por cima este frio…

Colo o cobertor nas pernas.

Agora o dachshund não ri, as orelhas caídas como aspas que enfatizam a inocência de uma espera incondicional.

Encontrei-o há décadas numa loja de artes e antiguidades em Amsterdam. Eu caminhava havia uma semana à margem dos canais, sob uma garoa eterna, vendo as pessoas passarem de bicicleta com reluzentes capas de chuva. Estava um pouco abatido pela descoberta de que o “estrangeiro” já não me tirava de mim, e todas as cidades agora se conectavam pela mesma indiferente e desoladora velocidade. O mundo, com suas aberrações de pobreza e riqueza, seria um mórbido Koyaanisqatsi?

Então, numa lojinha não muito distante do Rijksmuseum, vi o dachshund numa vitrine. Estava num canto destinado a objetos de porcelana holandesa, entre uma cabeça de bebê maior do que ele e uma anja pequenina de vestido esvoaçante. Embora não comprasse quase nada em minhas viagens, me assaltou a impressão de que aquele cão, com sua carência kitsch, embalsamado em caulim marrom, estava à minha espera.

Levei-o em minhas mudanças por diversas cidades. Quando me mudei para Lisboa, estive afastado dele por um ano. Chegou com os livros, num container que fez o caminho inverso de Cabral e Maurício de Nassau, como se retornasse em desalento ao peso do passado. Tirei-o do plástico-bolha. Olhou-me, vingativo:

– Então, velho. Chega de trapaças! É tolo tentar me esquecer.

Agora está ali, no canto, o pescoço erguido feito a batuta de um maestro, a reger o silêncio. Rute dorme há horas ao lado do aquecedor, que não dá conta do frio glacial. Eu aqui cheio de casacos, as pernas embrulhadas pelo inquieto cobertor, tento escrever. As ruas estão desertas, ninguém ousaria enfrentar essas coisas invisíveis, o ar noturno gelado, o voo cego do vírus faminto. Não há janelas para o que sinto. O que sinto é a ubiquidade da noite, o reverso plácido dos tumultos da vida. Mas não é a morte, posto que pulsa como relógio cuco numa casa em que um doente, solitário na cama, cisma a existência de Deus. O que sinto é a vertigem da vanidade de tudo. As próprias palavras de um possível texto, por mais sensíveis e atemporais, seriam escritas a giz.

Me resta a boa conversa com o dachshund.

– Onde estivemos mesmo?

– Curitiba, Brasília, São Paulo, Rio dos Cedros. Você é uma pessoa bastante inquieta.

– Conhece isto?

Procuro o livro de Hilda Hilst na estante. Folheio-o até chegar à página tão revisitada.

– Aqui! Achei: Para onde vão os trens, meu pai? Para Mahal, Tamí, para Camirí, espaços no mapa, e depois o pai ria: também para lugar algum, meu filho, tu podes ir e, ainda que se mova o trem, tu não te moves de ti.

A literatura te faz bem. Mas obseda um pouquinho. A esta hora, nesses dias avelhados… Não seria melhor uma sopa?

– Sopa? Não tenho fome…

– Vá, vá! Sopa esquenta. E não tem metáfora. Chega de metáforas, você precisa é de uma sopa.

Reuni batatas, cenouras e um pouco de couve. Fiquei olhando a fervura, o cobertor agora nos ombros, estático como o dachshund. Depois de comer, fui dormir com aquela frase de Rute na cabeça:

– Se eu pudesse, hibernava.

O cãozinho ficou lá na penumbra, a vigiar o sono inquieto do futuro.

Para ir além

À sombra de Salazar
Barco na chuva

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