Centopeia

À espera do metrô na estação de Campo Grande, em meio à massa soturna, cubro com a mão um bocejo que me enche os olhos de lágrimas.  

Foi um gesto automático. Não precisava ter erguido a mão, como todo mundo estou de máscara, ninguém veria a bocarra aberta. E se não estivesse, um ou outro olharia para mim, mas não esboçaria nenhuma reação. Acho que alguém poderia até desmaiar de sono aqui, mesmo assim não despertaria grande interesse. O cansaço nos une e indiferencia; somos a centopeia que se esgueira pela trama de fossos da cidade, não nos deteríamos se perdêssemos uma simples pata.  

O metrô se aproxima reverberando na estação um ruído estridente, ensurdecedor, mas permanecemos estáticos atrás da linha amarela que nos separa da volta para casa ou da morte nos trilhos. Não há, porém, nenhum suicida entre nós, não hoje: entramos todos como autômatos na composição iluminada, lotando os vagões. As portas se fecham em apática sincronia.

O metrô parte, mergulha na escuridão. Sentado em frente a duas garotas que digitam no celular com dedinhos velozes de máquina verbofágica, vejo refletida na janela uma entidade vingadora, vermelha e negra. Através dela, as paredes de concreto do fosso, por onde vamos em disparada insensível, e cabos, e pálidas luzes intermitentes.

– Próxima paragem, Alvalade, diz a gravação de uma voz feminina, cuja sensualidade contida pretende, a um tempo, manter a ordem e dar algum conforto aos corpos semiadormecidos sob a terra.

O senhor indiano de turbante e olhos de carneiro tosse. Agora sim há uma reação, as pessoas se voltam para ele. Terá só uma irritação na garganta ou será um emissário da peste?

– Meu filho joga na escolinha do Benfica, conta a brasileira meio gorducha para o rapazinho de cabelos raspados nas têmporas. – Eu sou cozinheira da escolinha.

O rapazinho olha para a mulher espantado, parece não entender porque ela falou com ele do nada, sem criar qualquer precedente. Acontece, penso, este menino ainda verá isso muitas vezes. Alguém, numa esquina da vida, de repente lhe dirá: Meu pai tocava piano, ou Trabalhei nesta loja em dois mil e treze. Faz parte da loucura e da poesia das grandes cidades, é como se uma ponta da trama oculta de pensares saltasse para fora, Ela já não quer saber de mim.

A entidade que vi refletida na janela é um jovem africano. Está ali, em pé, coberto por um conjunto de moletom vermelho, dos tênis Nike muito brancos ao capuz que lhe esconde a cabeça. Usa máscara preta e óculos escuros. No pescoço, exposto sobre o casaco do moletom, o grande crucifixo ancora a corrente dourada. Sangue, treva, Cristo e ouro de pés brancos, sugere a entidade que ele, ameaçado, ameaçador, evoca. As pessoas evitam olhá-lo. Talvez porque não saibam para onde ele olha.

Devagar, absorvido pela vaga figura de um adolescente de franja cortada em diagonal, adormeço. Quando acordo, a entidade vingadora sumiu. Também as duas meninas vebofágicas. O metrô arranca da estação de Arroios. Surge do vagão à frente um homem de muleta no braço direito. É jovem, tem barba rala; não parece sofrido, nem, na verdade, manco. Carrega na mão livre um papel plastificado, em que se vê a foto dele com um menino careca e uma frase: precisa de ajuda para o filho com câncer. A cozinheira lhe estende uma moeda, outros, como eu, apenas olham. É como se tanto fizesse ajudá-lo ou não, ser ele farsante ou não, isto aqui é um teatro sacolejante de sombras, e passa agora vertiginosamente rente a outra composição em sentido contrário, mas com destino idêntico, chegar e chegar ao lugar de partir para outro dia em que se espera chegar.

A voz veludosa enumera nomes:

– Próxima paragem, Anjos.

– Próxima paragem, Intendente.

– Próxima paragem, Matim Moniz.

– Próxima paragem, Rossio.

– Próxima paragem, Baixa Chiado.

– Próxima paragem, Cais Sodré.

Tenho que descer. Para deixar a multidão se esvair, fico olhando o metrô da outra pista ir embora. A lacraia metálica, terra adentro. Cheguei a ver a figura do homenzinho que pilotava a composição, mas à distância era só um playmobil, embora alguém lhe vá dizer quando abrir a porta de casa “Pai!”, “Pedro”, “Trouxeste o pão?”.

Enquanto subo as escadas para ganhar a margem do rio, lembro o metrô de São Paulo, que eu pegava para ir ao Terminal do Tietê. E o do Rio, a caminho da Glória. Tudo se comunica, nesse labirinto de sombras pelo ventre do planeta? Um dia haverá uma ligação subterrânea entre Xangai e Fortaleza, Reykjavik e Benguela? Nesse dia, vou pensando, mas esqueço a distopia.

O ar fresco do Tejo me invade de uma vontade básica de andar, sob esta lua quase cheia que reclama algum silêncio para as coisas mais vastas do céu.

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