Carta ao amigo sumido

Meu caro Futuro:

Como vai, velho? Sumido, não manda notícias… Rute acha que você tem se limitado a uns poucos amigos ricos, e que aos pobres como a gente só dá sinal de vida quando está triste, desamparado. Não repare, ela anda cansada, aliás como todos nós. É que os dias, nessa vida virtual, se repetem feito vagões de um trem subterrâneo que não sabemos de onde veio, para onde vai. E a pandemia nos põe ainda mais isolados, mais intangíveis. Ouvimos o rumor esparso do tráfego dez andares abaixo, algumas vozes que esvoaçam… parecem ecos de um tempo morto. Enfim, isso tudo, mais uma recordação que lhe contarei, me deu saudades da antiga tradição epistolar. E de você.

Lembra quando nos visitava e abria os braços para nós, as novidades que trazia, como ríamos só de estar juntos?

Bons tempos aqueles, mesmo sabendo que nos fazíamos de ingênuos enquanto você já semeava, com a nossa tola conivência, a monocultura da matéria. Mas, enfim, “bola pra frente”, como dizia sua voz fraterna.

Tento imaginar onde se esconde, o que faz hoje em dia. Por conhecê-lo há mais de meio século, acredito que esteja muito ocupado com as mesmas coisas que, infelizmente, o obsedam há um bom tempo. Progresso científico, tecnocracia, globalização de empresas titânicas, desmonte dos países pobres, dos direitos humanos, mais fome, medo, ignorância… Só de pensar em você cavando sempre o gigantesco abismo social já fico cansado. Sem falar nos seus empreendimentos fantásticos, como levar alguns eleitos a Marte ou instalar câmeras de vídeo na memória das pessoas. Deve ser uma trabalheira insana, se for assim como digo. Mas, reconheço, sou minúsculo diante de sua esmagadora criatividade, infinitamente superior à minha.

Mesmo assim (ou quem sabe por isso) me permita lhe dar uns conselhos. Mas antes vou contar uma história. Posso? Sei que você não tem dado ouvidos ao passado, no entanto, por favor, gaste mais alguns minutos com um velho companheiro.

Como você sabe, quando eu era menino não existia computador, celular. Meu avô mandava cartas para sua tia, Frida, que morava na Alemanha, e só depois de uns quatro meses a resposta chegava a Curitiba. A família se reunia para ouvir as notícias, ver a letra segura e bonita de um ser quase fictício. O avô lia:

Lieber Robert: Gestern war es sonnig und ich war mit Julius spazieren…

Eu ficava fantasiando aquele sol mais brando da remota Alemanha, a rua florida e sublimada de misérias pela qual a tia e Julius andavam, suas roupas de uma discreta elegância, os gestos sóbrios, o mercado de peixes cintilantes a que eles foram e onde ela dizia ter lembrado do sobrinho distante, quando viu a palavra brasilien numa especiaria qualquer.

As cartas de Frida eram um meio de transporte suave para o devaneio; diante de nós estava a caligrafia lapidada de alguém que generosamente vertera naquele papel uma vida sem os nossos sobressaltos, alguém que não existia senão na imaginação. O papel tinha cheiro, estivera nas mãos da emissária, atravessara o oceano num avião carregado de palavras a haver. Era palpável e mágico.

Então, meu genial e ansioso amigo, você criou as maquininhas da instantaneidade, e hoje – se já não tivessem ambos voltado ao pó das estrelas – Tia Frida falaria com meu avô quando quisesse, por vídeo, e o meu mercado imaginário de esplendores mundanos coincidiria com a comezinha realidade.

Fico triste só de pensar nisso, confesso.

Onde foram parar as cartas, meu caro, onde a espera longa, fricativa, onde aquela poltrona remota em que tante Frida escrevia, a poltrona de veludo vermelho maltratada pelo gato que ela acariciava, aquele gato alemão que eu via como se esculpisse a entidade felina de uma fábula?

Você vai dizer que ando saudosista, que virei um homem azedo. E virará as costas para mim, seguirá seu caminho.

Ok, meu velho. Mas não acha que anda simplificando tudo demais? A começar pelo conceito que o entrona: Mistério. O que você fez dele? Por quê? Certamente sabe que agora pensamos saber tudo, e que isso cria uma terrível carência de assombro. Como viver sem a possibilidade de que as coisas nos surpreendam, encantem, ou sem os poderes sutis desse vento íntimo, a utopia?

Meu bom Futuro, eu sei que não vai gostar disso, conheço-o, é altivo, fugidio, mas você anda cada vez mais parecido com seu pai, o Presente, que ultimamente tem acordado sem lembrar de seus sonhos.

Por que, meu camarada, você nos fez alargar as distâncias entre as pessoas, perder-nos em mil informações inúteis, numa insone interatividade solitária, enquanto são delidos bichos, árvores, mares, culturas, raças – o que temos de melhor nesta breve passagem pela Terra?

Precisamos tirar você dessa, brother. Antes que você mesmo se acabe.

Quando ler estas minhas palavras, talvez já me encontre no reino das sombras, se é que os mortos vão para algum reino e, de seu corpo esfumado, resiste uma sombra. Talvez, porém, me alcance vivo, bem velho – não sei. De uma forma ou de outra, espero que então as pessoas tenham saído desse transe tenebroso; a Terra e todos os seus seres, irmanados, respirem em paz. E você jogue esta carta ao vento, com o riso irônico de quem nos fez passar por um mar de magma para colher a flor cósmica de uma nova consciência.


Para ir além

O copo, a couve, o c* e a cartola

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