Ave migratória

O ônibus sai da rodoviária de Sete Rios deslizando insensivelmente pelas ruas quase vazias, como um sonâmbulo que sonha pálidos passageiros. Na madrugada grávida de luz, cruza Alvalade, Campo Grande, Olivais; entra na A1, rumo ao Norte, sem sobressaltos ou esforço aparente. O dia vai nascendo. A paisagem urbana emerge das sombras ao mesmo tempo em que rareia. Depois de Vila Franca de Xira, os campos se abrem; passam a se alternar com pequenas cidades ou vilas, entorpecidas pelo sono mais fundo da manhã de domingo.

Tiro da mochila o livro que estou lendo, mas não abro. Deixo no colo, como quem segura a maçaneta de uma porta por onde, se preciso, poderá se evadir. E insisto mais um pouco em buscar lá fora algo que me traga aquele antigo prazer de surpreender a alma doméstica com cheiro novo de brisa estrangeira.

Os passageiros se deixam levar em silêncio, uns olhando o celular, outros, a paisagem. As placas dizem Aveiras de Cima, Cartaxo, Santarém. Dizem que estou numa estrada jamais percorrida por mim. Mas não dizem, embora sua forma padronizada o sugira, que já trilhei tantos caminhos semelhantes (a mesma praça, os mesmos carros e comércios, as mesmas ruas fervilhantes de vaidade efêmera) que perdi a capacidade de me perder. Com ela, o maravilhosamente ingênuo dom do espanto. De tal forma que agora, quando o ônibus entra em Fátima para fazer uma parada, me lembro do mito cristão que envolve o lugar. Mas em vez de verificar se não passamos pelo famoso Santuário, procuro meus cigarros nos bolsos do casaco, na mochila. Mais do que um lugar sagrado, preciso urgente de um canto isolado para fumar em paz.

A segunda parte da viagem nos levará diretamente a Viseu, me explica o motorista careca no sotaque mais aberto do norte. Subo as escadinhas, instalo-me na poltrona. Abro o livro e, antes mesmo de partirmos, entro no mundo das mulheres quebradiças de Alice Munro. Conto a conto, vou vendo seus pedacinhos se espalharem em desventuras com filhos distantes, homens fugidios, pais indiferentes… Vou assistindo, mudo de interesse, elas se desventrarem, em busca de algo que não encontram em sua própria carne prisioneira. Os saltos temporais abrem perspectivas delicadas: a jovem subitamente se torna velha, e então as duas, jovem e velha, parecem se olhar como estranhas que tiveram uma vida comum. A prosa simples destila percepções agudas, inusitadas. “A maré vazante deixa a descoberto uma longa e deserta faixa de areia ainda úmida, por onde se pode caminhar tão facilmente como sobre cimento na sua última fase de secagem.” Me sinto levado a olhar a vida por uma inteligência tão sutil quanto generosa, que à parte me diz: “Você está vendo? Você está vendo o avesso disso?”. Não sei dizer o que é exatamente este avesso, mas sim, eu o vejo. Está ali, sob a trama de amor feroz, amizade corrosiva, egoísmo e busca desesperada do outro. É como a luz de uma estrela extinta, a aura luminosa de um furor que se consumiu. Fecho o livro e sinto ter nas mãos os desvelos de uma atenção profundamente humana.

Ao dobrar uma esquina, me deparo com um grupo de jovens sentado num café, rindo ao sol. Um deles fica em pé, abre os braços e volta o rosto para o céu, como se acabasse de ganhar um prêmio.

Quantas vezes, penso (o ônibus entra na periferia de Viseu), quantas vezes um livro me serviu de espaçonave. Algo com que ver a humanidade cada vez mais de longe, sua tragédia sublimada por um invento que lhe escapa.

Caminho pelas ruazinhas de Viseu, aliviado. A reunião de trabalho que me trouxe aqui foi bem sucedida. Depois, almocei tranquilo com duas pessoas calmas e gentis. Já estou livre para conhecer a cidade, tenho algum tempo antes de partir novamente.

Sigo a esmo pelas vielas, cujas casas graves e belas ecoam ainda o trote de cavalos ancestrais. Ao dobrar uma esquina, me deparo com um grupo de jovens sentado num café, rindo ao sol. Um deles fica em pé, abre os braços e volta o rosto para o céu, como se acabasse de ganhar um prêmio. Desvio o olhar e vejo os fundos da Catedral, plantado sobre pedras que brotam da rua como gigantescas tartarugas. Quase no mesmo instante, descubro diante da muralha a velhinha que olha os jovens com uma curiosidade imóvel, viciosa. A gárgula mira as crianças a tremular alegremente na superfície do dia, como se as quisesse transformar também em pedra manchada pelo vitiligo das eras. Mas esbarra, sempre esbarrará na cornucópia da vida, de onde brota neste preciso momento o pombo azulado, seu voo rasante que parece deixar, na porta da velha loja de artigos de funilaria, um simpático homenzinho de avental – e este perfume divino de terra estrangeira.

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