Ame-o e deixe-o

Ainda faltam alguns dias para a viagem, mas tudo que faço aqui já parece inútil. Pra que esfregar tanto essa panela? Nem vou mais vou usá-la. Por que comprar mais livros, se só levarei meia dúzia? A varanda precisa de um novo portãozinho, mas a casa ficará para trás, com portãozinho, varanda, araucárias, sabiás, com tudo. Jogo fora um pano de louça velho, mudo almofadas de lugar, mas nada tem substância, é como se eu me movesse numa vida passada. Me sento para comer mastigando futuro, bebendo nostalgia. As horas se arrastam – já não estou mais aqui.

Vou-me embora do Brasil. Deixarei esta casinha na Quinta do Brejo com tudo que a cerca, os amigos, as tardes na editora, as ruas viciosas da cidade, o riso frouxo e as brigas nos bares, o mapa difuso dos amores que esbocei feito um cego. Ao mesmo tempo isso me deixa um pouco triste e me dá prazer, um prazer de livro encerrado. Como se o que vivi ganhasse ar de fábula. Como se o que foi dolorido, feio, infame desse as mãos para o que foi belo, grandioso, e essas emoções migrassem para distâncias míticas.

Vou-me embora para Portugal. Confesso que cansei daqui, das coisas tristes que têm se abatido sobre a nossa gente. Desprezo pelos pobres, pelos negros, velhos, índios, mulheres, gays. Ataques insanos ao meio ambiente. Homens ricos, movidos por uma cobiça devastadora, cavando mais e mais o abismo social. São coisas que, mesmo vindo de cima, das alturas irrespiráveis da política e do grande capital, surgiram de nós. Revelam um pouco a nossa cara feia. A maioria de nós, afinal, elegeu o homem que comanda todos esses crimes de lesa-vida.

Meu amor pelo Brasil permanece intacto, mas sofreu um eclipse. A face sombria encobriu a luz natural que, apesar de todas as dificuldades, sempre aqueceu meus dias. Tenho andado desanimado, cético. Olho para os meus semelhantes como se fossem um espelho, vejo a aridez de um egoísmo atávico. Não fizemos a lição de história, não tiramos do passado sangrento a urgência de melhorar nossa relação com o outro.

O eclipse será longo? Voltarei um dia? Talvez. Talvez algo mude dentro de mim, talvez o velho sol tropical volte a brilhar. Não sei. Tenho cinquenta e cinco. Passei a infância vendo a foto do Garrastazu na sala de aula, minha mãe contando centavos. Me vi preso pelo DOPS aos dezoito, numa manifestação de trabalhadores que mal tinham o que comer. Enfiei a cabeça no trabalho para sustentar a família e vejo meus filhos rumando sorridentes para as estufas da classe média… Perdoem: estou exausto.

Me disseram que em Portugal as escolas públicas são boas, que a saúde pública funciona. Dá pra gente andar com os filhos na rua à noite, sem medo. Os ricos e os pobres não ficam tão longe uns dos outros. E não se fala tanto em dinheiro. Quero oferecer isso às crianças. Quem sabe um dia se interessem por algo menos estreito do que uma boa carreira num escritório.

Não sei se vai dar certo. Como escreveu Hilda Hilst, “tu podes ir e ainda que se mova o trem, tu não te moves de ti”. Melodia de bossa nova ou silêncio de fome, o Brasil vai comigo. Mas lá espero ver coisas diferentes, pelo menos por um tempo. E mesmo sabendo que vivo numa espécie de exílio, talvez algumas manhãs eu acorde em paz. E sinta mais alegria ao abrir a janela. 

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