A gaveta secreta

Na esplanada do café, L. olha para as migalhas do bolo que acaba de comer. Parece encontrar entre elas a semente de um pensamento. Acende um cigarro. Então me conta que, ao sair do enterro da mãe, disse ao marido que gostaria de ir à Feira da Ladra. A princípio ele não entendeu. L. repetiu e o homem ficou indignado. Não fazia sentido enterrar a mãe e ir à feira, como se nada houvesse acontecido. Intimidada, L. não insistiu. Foram para casa, como deviam fazer (palavras do marido) “as pessoas normais numa situação dessas”.  

– O que são pessoas normais?, diz L., dobrando com a ajuda das unhas um saquinho vazio de açúcar até reduzi-lo a um ponto.

Fico calado. O melhor que posso fazer agora é ouvi-la com atenção. A mãe dela morreu há duas semanas, sei como as coisas ficam confusas por um tempo. Há quem chore diante da absurda desaparição de uma pessoa próxima, há quem não chore; uns parecem indiferentes, outros se apegam a Deus. O luto de cada um é um pó em suspensão, com tempo específico para repousar no fundo da consciência.

– A liberdade é uma ideia, digo. Só uma ideia.

Quero abrir caminho para que L. tire alguma conclusão do comentário que fez, mas ela muda de assunto. Quando a garota do balcão deixa sobre a mesa uma nova rodada de café, volta ao tema de forma indireta.

– Algumas emoções é melhor guardar numa gaveta secreta.

Tratando-se do assunto em questão, posso imaginar o que ela esconde na tal gaveta. A morte da mãe deve tê-la libertado de uma enorme opressão. Várias vezes me falou de seu egoísmo, de sua personalidade sarcástica, voraz. A julgar pelos relatos esparsos que me fez ao longo dos anos, no jardim em que aquela senhora reinava o marido e a filha eram meros cogumelos à sombra. Roubava-lhes o valor e a segurança para que dependessem dela. E quando surgia uma oportunidade, censurava-os por isso. L. às vezes imita a mãe fazendo uma boca de asco: “Estou cercada de parvos”.

Agora me parece até natural que quisesse ir à Feira da Ladra depois do enterro. Me entusiasmo com o pensamento e passo do ponto:

– O que você queria comprar na feira?

– Qual feira?

Antes que eu responda, percebe minha intenção mórbida de investigar sua reação naquele dia. Lança sobre mim um olhar desconfiado, com um ponta de censura.

– Nada específico. Queria só respirar um pouco.

Pagamos a conta e descemos a rua até a porta de seu escritório. Quando estou indo embora, ela diz:

– Se calhar ia comprar um gorro. Acho-os giros, mas sempre achei que não me ficavam bem.

Entro numa livraria, mas me limito a andar entre as estantes. Fico imaginando o que a mãe terá dito a L. sobre usar gorros. Penso na gaveta secreta, na sua pergunta sobre pessoas normais. Tento avaliar quantas coisas eu também escondo em algum lugar escuro de mim, coisas que intoxicam a existência. O que fazer? Há um jogo cruel, com regras definidas. Só participa dele quem fizer de si um avatar sorridente, quem não revelar mais do que a superfície da sensibilidade, a parte banal, sociável. E está fora do jogo quem se declarar fraco, pobre, sujo, infame. Mesmo esmagado, é preciso parecer um vencedor. “Nunca conheci quem tivesse levado porrada”, escreveu Álvaro de Campos.

Em casa, resolvo escrever um e-mail para L.

“Você me perguntou o que são pessoas normais. Sua pergunta, é claro, estava cheia de ressentimentos, e não é difícil compreender isso. Quantas vezes a normalidade é insuportável, num único dia? A gente veste roupas e conceitos convenientes e vai para a rua fazer escambo de aparências. Não há outro jeito: a vontade de gritar com os idiotas, estrangular os egoístas, cuspir na cara dos autoritários só reforçaria a idiotice, o egoísmo e a tirania. Um dos pilares da civilização não é a hipocrisia? A questão é até que ponto a gente quer ser subjugado por ela. Tem uns que transformam os desejos sufocados em transgressões, escuras ou luminosas. Tem outros que vedam a casa e abrem o gás. Mas a maioria de nós toma até o fim doses diárias de futuro, que é quando seremos felizes.

Acho que a normalidade é o medo de nós mesmos, do que poderíamos fazer fora da gaiola social. Me pergunto se precisamos de medo como precisamos de cuecas.”

Poucas horas depois ela me escreve:

“Depois de ires embora fui lá comprar o gorro. Acho que não fico a parecer uma coitadinha, ou sem abrigo, como sempre me disseram. Depois dei um passeio à beira rio, fazia um vento frio então pareceu-me mais lógico usar o gorro.

Chorei de raiva.”

Pergunto a ela se posso usar suas palavras numa crônica que vou escrever.

“Sim, podes, desde que não apareça o meu nome, trabalho, algo que me identifique. Cuidado como o contas, que não fique a parecer que sou meio lunática. Escreve de forma a que eu pareça o mais normal possível.

Beijos.”

Não faz sentido. Se vou adulterar o nome e as circunstâncias, por que se preocupa em parecer lunática? Deve recear que mesmo assim alguém a reconheça. E eis a chave da gaveta: pessoas normais são irreconhecíveis, passam ilesas pela mandíbula do mundo.

Não sei se vou abrandar as coisas que aconteceram. Talvez mude apenas o pano de fundo. Um bom começo para esta história seria:

L. anda com seu gorro à margem do Tejo, fluindo como as águas que espelham o céu mas encobrem naufrágios enluvados pelo lodo dos anos.

Não sei. Talvez isso tudo não seja tão poético assim.

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