A chave do outro

O comboio parte da Gare do Oriente. Serpenteia pelos trilhos, num suave sacolejo através da garoa fina. Aos poucos, ganha velocidade. A paisagem corre cada vez mais rápido diante desta câmera que sou em travelling contínuo. O muro cheio de grafites, o poste, a velha que luta para abrir o guarda-chuva, o carro, o viaduto, o ciclista encapuzado, outro poste… as imagens se sucedem despertando pensamentos frouxos, que voam com elas. Fecho o zíper do casaco até o queixo, cruzo as pernas, como se me arrumasse para a chegada de mim mesmo. Em todo o vagão só há um senhor mais à frente, olhando o celular. Só um senhor, porque eu não conto: me sinto o vagão por onde anda um vagão com um senhor dentro; o ambiente mental e sensitivo em que a realidade projeta seu filme volátil.

É sábado, meio da tarde, mas o tempo está submerso na memória do tempo. A garoa cai no passado que surge. A torre, a loja de tintas, a luz baça de um pisca-pisca, deixo-me levar entre coisas que são ecos de coisas. Quando chegar a Sintra, recordarei estar chegando a Sintra. Eu mesmo a lembrança do homem que lembra.

O senhor do celular anda pelo vagão, procura alguma coisa. Seus olhos passam por mim como a lanterna de um vigia, sem deter-se. Um pouco aflito, olha embaixo dos assentos. Quando fica de cócoras para ver melhor, o surrado sobretudo negro toca o chão, e sua figura lembra um corvo, uma criatura selvagem que impõe o momento presente.

Tento imaginar o que ele perdeu. Talvez seja o celular, mas é improvável, não largava o aparelho. Talvez seja a carteira, ou o envelope que tinha sobre as pernas. Não tinha um envelope sobre as pernas? Um envelope, um livro fino, algo assim.

O comboio vai parando nas estações, Benfica, Santa Cruz, Reboleira. O sujeito não desiste da busca, vai e volta pelo vagão, senta-se, torna a procurar. Como não troca nenhuma palavra comigo nem sequer me dirige o olhar, fico no meu canto. Quem sabe eu tenha feito uma simbiose com o vagão, a qualquer momento o vigia virá com a lanterna vasculhar meus bolsos, minha boca, tirar meu casaco, olhar dentro dos meus sapatos.

O celular ele não perdeu, está ligando para alguém. Não consigo ouvir o que diz. A mão livre espalmada para cima me faz supor que as coisas não vão bem. Tenho vontade de ajudá-lo, mas receio que não goste disso. A ajuda de um estranho muitas vezes é interpretada como impertinência.

Em Queluz, para diante de mim. Me encara como se fôssemos dois vizinhos numa cerca, num tom amigável.

– O senhor não viu por aí umas chaves?

Respondo que não. Ele faz a mesma pergunta a uma senhora de tailleur  verde-claro, de balconista de loja, que está logo atrás de mim (quando entrou no vagão?). Ela também não viu nada.

– Perdi as chaves de casa, diz ele, passando a mão pelos cabelos.

A mulher faz uma cara infantil de desamparo, abraça a bolsinha que tem no colo.

Um jovem africano embarca em Massamá-Barcarena. Usa óculos de aro redondo, um gorro vermelho. Fica em pé perto da porta, olhando o celular, sem acusar nossa presença. Não se distrai nem mesmo quando o senhor examina o chão em torno dele.

Já não chove, a luz leitosa que atravessa as nuvens reluz nos prédios molhados à beira do caminho. O sujeito desistiu da busca, voltou ao seu lugar. Eu devia me levantar e dizer aos outros que temos de procurar juntos as chaves dele. Que precisamos buscar as chaves dos outros como se fossem nossas, porque são nossas, cada pessoa que abre a porta de casa nos liberta do desalento da espécie. Saberia dizê-lo, domino palavras ressoantes, solidariedade, bem comum, fraternidade, mas deixo a flor do humanismo murchar em minha boca.

O comboio para em Agualva-Cacém. Enche de gente. O tempo melhorou, parece que as pessoas se animaram a passear em Sintra.

O que vou fazer em Sintra? Quero dizer, sei o que vou fazer lá, uma palestra sobre literatura. Mas não sei por que motivo fazê-lo. Um escritor atrás de uma mesa, como um professor, falando para uma plateia muda. Puro estímulo ao exercício narcísico. Não é mais disso que precisamos, definitivamente. É só o que há, exercício narcísico, já não nos damos ao trabalho de procurar a chave do outro.

A balconista passa por mim, contornando as pessoas que entopem o corredor. Penso que irá desembarcar, mas vai até o senhor do celular. Consigo vê-la conversando com ele. Diz algo que faz o homem sorrir. Ele hesita um pouco, cabisbaixo, então se levanta e acompanha a mulher até a porta. Ficam em Algueirão. O que ela disse que o tirou de seu transe solitário? Onde vão agora, descendo juntos as escadas da estação? Eles nem se conheciam…

O homem perdeu as chaves; eu, o fio da ameada. Mas estamos sempre perdendo alguma coisa, chaves, amores, documentos, amigos, meias. O nexo da história. A matéria de que é feita a vida nos escapa, se esvai pelos desvãos da memória. No entanto, se não a perdêssemos, que lugar haveria para o novo que ventila as salas viciosas da alma?

Chegamos a Sintra.

Quando desembarco, sou a multidão pelas ruazinhas de nosso destino comum.

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