A breve aparição de um golfinho

Clara me recebe à porta com um riso meigo, inclinando a cabeça sobre o ombro esquerdo. Usa um vestido calculadamente despojado, cujas estampas em tons de azul combinam com o anil das mechas que fez nos cabelos brancos. Logo atrás dela, em seu tailleur de embaixatriz para receber pessoas importantes, está Carlota, sua mãe. Não tenho, claro, “importância” nenhuma, e a formalidade das duas me torna subitamente grande e abrutalhado. Podia ter colocado uma camisa mais nova, tirado o pó das botas, limitado esta barba que já me desce pelo gogó. Aperto suas mãos pequenas e macias com suave firmeza, de modo a não transmitir-lhes nada do meu desconforto.

As duas, por empatia ou destreza social, me oferecem olhares calorosos.

Sigo Carlota pelos cômodos do extenso apartamento, entre móveis torneados e lustrosos e os quadros coloridos de Clara, que estão por toda parte.

– Esta cômoda era de meu pai. É francesa, do século dezoito. ­– Carlota alisa o móvel, suspira, como se a lembrança lhe pesasse. Depois aponta uma tela. ­– A Clarinha tem imenso talento, não tem?

Olho para uma figura tosca de mulher, cujas cores berrantes são um espasmo da pretensão impotente da artista. Sorrio para Carlota, assentindo. Clara vem me socorrer:

– Não submeta o Marcos a esta tortura! Vamos para a sala de jantar.

Ela me pede desculpas pela pressa, explica que a tia precisa comer, tem um compromisso logo mais. Agradeço mentalmente à tia, que ainda não conheço, pois sua pressa vai abreviar minha visita. Sentam-me diante da mesa. Sobre a toalha de um branco intimidante, diante dos pratos e taças reluzentes, já colocaram queijos, vinho, azeitonas. As duas pipilam juntas e, curiosamente, somem por um corredor. Provo o vinho que me foi servido, belisco um queijo camponês. Examino sobre minha cabeça o lustre em forma de fita de vidro em espiral; destoa de modo chocante dos móveis senhoriais, o que me leva a pensar que em toda a casa há um conflito estético entre os temperamentos da embaixatriz e da artista.

Ouço um tilintar de pratos e talheres lá dentro. Estão preparando o jantar.

Conheço-as muito pouco. Me encontraram em dois eventos literários e, no terceiro, convidaram-me a escrever o texto do catálogo de uma exposição de Clara. Fiz um preço alto, elas o aceitaram sem discutir, mas não sem me arrastar para o seu mundo. Agora estou aqui e não sei se a comida descerá bem, posto que terei de redigir algo elogioso sobre os espantalhos de tinta que me olham das paredes.

Só então percebo que não estou só na sala.

No canto sombrio à minha direita, há uma mulher sentada, imóvel. Cumprimento-a. De máscara e no português fechado de Lisboa, ela responde qualquer coisa que não entendo. Pergunto-lhe se quer um pouco de vinho. Novamente não entendo o que ela diz, mas a mão erguida é uma recusa. Deve ser a tia. Aos poucos reparo que é alta, bem velhinha. Eu devia conversar com ela, mas provavelmente a deixaria irritada por não captar bulhufas do que diz.

Ficamos os dois em silêncio. Finjo naturalidade, mordisco azeitonas, beberico o vinho. A mulher parada ali, no entanto, é como o animal inofensivo que se torna ameaçador numa noite escura. Carlota e Clara quebram meu constrangimento ao invadir a sala com travessas fumegantes.

Clara traz a tia para a mesa. Ajeita-a na cabeceira, de modo a deixar seu rosto na penumbra, fora do cone de luz. Serve-lhe algo exclusivo, uma espécie de creme. A tia tira a máscara, eu desvio o olhar. Procuro não demonstrar nehuma reação ao que vi.

Conversamos sobre generalidades até nos concentrarmos no catálogo. O tema, diz Clara, é a libertação das mulheres. Me fala de passagem de Frida Kahlo e de uma tal de Artemisia Gentileschi. Carlota, em tom de confidência (embora todos possam ouvi-la), toca com sutileza meu braço:

– A Clarinha desde criança era muito irreverente.

Me conta então que conheceu La Casa Azul, em Coyocán, a casa onde Frida Khalo nasceu e morreu. Fico sabendo que esteve também na China, no Vietnam, na Austrália, Índia, várias vezes no Brasil. Rodou o mundo e em toda parte comeu maravilhosos pratos “típicos”, servidos em hotéis cinco estrelas. Imagino-a entrando num único hotel que sai navegando pelo planeta; o cardápio e a paisagem vão mudando, mas ela está sempre à mesma mesa, com as mesmas pessoas ricas e estupidamente viajadas.

Pela porta de vidro da sala de jantar, vejo surgir um gato ruivo com um rato na boca. A presa mexe o rabo, o predador olha-nos fixamente. Carlota bate as mãos para que o bichano vá embora.

– Ele trouxe-me uma prendinha.

A tia diz algo. Mesmo sem máscara, não a entendo. Evito olhá-la de frente, para não distinguir bem o seu rosto. Clara comenta:

–  Se calhar, viajou mais do que a mãe.

Concentrada em mim, ansiosa, a tia fala comigo. Começa a chorar.

Fico calado, mas elas percebem meu embaraço. Traduzem o que está acontecendo. O marido de Constança foi um homem belíssimo que passou a vida a viajar. Os dois eram muito felizes, “davam-se muito bem”. Há alguns anos ele morrera e, depois, Constança teve um câncer na boca. Tiraram parte dos dentes e do maxilar de sua face direita. Faço um sim compreensivo com a cabeça e resolvo encarar afetuosamente a tia, mas não posso evitar o frio repentino que me paralisa os lábios. Constança é um monstro. Ou melhor, uma mulher que foi parcialmente devorada por algo monstruoso. A cabeça horrenda, longa e fina, pende sobre um corpo delicado de garça invernal. A luz da espiral corta-a na altura do peito, como se condenasse o corpo à vida e o pensamento às trevas.

O que é isso?, digo para o garfo – entrei num pesadelo alheio?

Como e bebo o que me servem, sem saber que gosto tem. Ao final do jantar, peço duas semanas para entregar o texto, me despeço das três. Constança, novamente de máscara, estende para mim a mão trêmula, que seguro sufocando a vergonha do medo que ela me inspira. Carlota coloca diante dos meus olhos o seu celular, não compreendo a foto que me mostra. Clara aperta as mãos sobre o peito:

– Era linda!

Foco a imagem no telefone. Vejo uma moça de beleza quase insustentável, uns fios de cabelo dispersos no rosto, a chama esguia do corpo desenhada pelo vestido ao vento. Percebo que aquela é Constança aos vinte, vinte e poucos anos…

Desembaraço-me das três contendo a pressa.

Desço as escadas meio tonto de tudo aquilo. No patamar entre dois lances, sou atingido pelo lampejo: a jovem Constança me assombrou mais do que a velha disforme. Foi como ver, pela janela de um trem que atravessa o deserto, a breve aparição de um golfinho a saltar sobre águas extintas. A sombra voraz de sua plenitude.

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