Perdão, Doralice

Perdoe-me, Doralice. Vou te chamar assim porque não perguntei teu nome e este foi o primeiro que me ocorreu. Te vi semanas atrás na areia da praia de Boa Viagem empurrando um carrinho para vender caldinho. Não comprei, mas passei um bom tempo observando o cuidado com que, antes de começar a caminhada à beira-mar, você limpou com álcool e depois abriu as latas de milho verde, pegou os frascos de pimenta de dentro de um compartimento fechado e colocou na bandeja do carrinho, organizou metodicamente as garrafas térmicas com os caldos de camarão, feijão, peixe.

“Caldinho do Leandro”, era o que estava escrito no carrinho. Pensei que Leandro poderia ser teu companheiro, ou talvez teu filho. Imaginei para vocês uma vida simples, mas digna, de pequenos empreendedores que acordam de madrugada para preparar os caldos na cozinha apertada e limpa, e ao fim do dia levam para casa o valor razoável arrecadado debaixo do sol ardido do Recife.

Mas então começaram a aparecer de todos os lados outros “Caldinhos do Leandro”. Homens e mulheres, adolescentes, jovens e velhos arrastando na areia carrinhos que não são seus. Quase todos homens negros e mulheres negras como você, Doralice, que parecia ter as pernas pesadas e o belo rosto tranquilo. Que antes de pisar na areia já havia passado na cozinha do “patrão” para pegar o carrinho com os caldos.

De onde você veio, Doralice? Foi de um dos barracos que vi por todos os lados assim que me distanciei um pouco do meu lugar privilegiado em Boa Viagem? Você tem filhos, você tem casa, você tem religião, você tem esperança? Até que ano você estudou? Há quanto tempo você conhece Leandro, o que você fazia antes de se juntar aos mais de 70 ambulantes que trabalham para ele, como dizem os textos que a curiosidade me levou a procurar na internet?

Soube que Leandro também já suou muito vendendo caldinho. Hoje, não. Hoje ele tem uma cozinha industrial no Ibura, o bairro onde mais morre gente por arma de fogo no Recife, enquanto pelos morros proliferam as igrejas evangélicas. No Ibura, quem venceu as eleições foi Jair Bolsonaro. Desde o primeiro turno. Estava todo mundo cansado da violência. No meio do tiroteio não dá pra pensar em democracia.

Leandro não tem culpa – nem disso e nem de manter um pequeno exército de gente mal paga trabalhando para ele sem qualquer direito a não ser o de levar uns trocados pra casa no fim de cada dia extenuante – segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo.

Leandro é uma pecinha microscópica da máquina mortífera que te obriga a viver assim, Doralice, caminhando quilômetros na areia pesada em frente aos prédios chiques da orla, sem salário, sem férias, sem décimo terceiro, sem poder parar. Perdoe, Doralice. Será que você já não trabalhou num desses apartamentos de andar inteiro? Será que já sentiu a raiva que por vezes brota do vale profundo da desigualdade?

Talvez não. Eu vi como você cuida da higiene do caldinho do Leandro. Não interessa se o carrinho não é teu, nem se você só vai ficar com uma parte pequena do dinheiro. Você cuida. É sua obrigação. E é o que você tem, Doralice.

Talvez você até goste dessa vida. Talvez pense que está tudo certo, que é assim mesmo, que essa é a vontade de Deus e que se você não chegou lá é porque não se esforçou o bastante. Mas não, Doralice. Isso não é coisa de Deus, isso é do homem. A ganância, a ambição, a podridão. A fome, a sede, a humilhação. O jeito como tudo aconteceu e acontece para que uns vivam em apartamentos de andar inteiro e outros na rua ou em barracos miseráveis de uma peça. Para que uns gastem numa noite o que você nunca vai ganhar em um ano.

O problema, Doralice, é que a maioria deles dorme bem. E seria preciso que perdessem o sono pra você ter alguma chance. Você e também a mulher que vi outro dia, de relance, numa esquina de Curitiba, erguendo um cartaz com a palavra fome. Vi de relance porque não tive coragem de olhar de outro jeito. Porque eu não tinha dinheiro na bolsa. Por vergonha. Por culpa. Por raiva. Por saber que, mesmo que eu tivesse dinheiro, mesmo que outras pessoas tenham ajudado a aliviar a fome daquela mulher, no outro dia ela estaria lá de novo, e no outro também, vivendo a miséria de cada dia e escancarando o nosso fracasso.

Assim como você continua empurrando o carrinho na areia pesada, para depois atravessar cansada o precipício entre a orla e a comunidade e voltar para a mesma pobreza, a mesma míngua, o mesmo lugar em que te esqueceram.

Perdão, Doralice, por esse vale, por esse abismo, pelo sono tranquilo. Perdoe-me por não perguntar seu nome.

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