Para Rachel

Era uma tarde calma, como costumavam ser as tardes na Lapa. De braços dados, minha avó e eu fomos caminhando pelas calçadas de pedra irregular até a casa da mãe dela, minha bisavó. Vivíamos sem pressa, com tempo para andar no ritmo lento dos seus passos.

Fizemos uma visita corriqueira, da qual não lembro detalhes, exceto pela despedida. Havia garoado e minha bisavó, então já passada dos 90 anos, foi até a porta para recomendar que a filha, próxima dos 80, tivesse cuidado com a calçada lisa. Minha avó respondeu algo como “não se preocupe, mamãe”, e começamos o caminho de volta.

Não lembro se falamos sobre isso em algum momento, durante ou depois do passeio, ou se apenas processei a cena em silêncio, preparando um compartimento da memória onde ela ficaria gravada para sempre. Eu tinha 15 ou 16 anos, vivia aquele tempo em que tudo nos parece eterno e as coisas e as presenças ainda não ganharam o valor que a perspectiva da finitude lhes dá. Mas talvez eu tenha recebido ali a primeira centelha de entendimento sobre a magnitude do amor materno.

Minha avó, que há muitas décadas havia assumido o papel de cuidadora – das cinco filhas, do marido, da casa –, que agora era avó e também bisavó, que tinha o passo lento e o rosto marcado pelo tempo, ainda era também objeto de cuidado maternal. Era como se ali se revelasse uma porção criança que sobrevivia naquela mulher de cabelos brancos, e que só era possível porque ela ainda era filha.

Anos mais tarde, descobri um pequeno livro que me marcou profundamente: “O livro de minha mãe”, do grego-suíço Albert Cohen. É o texto de um homem atormentado pela ausência da mãe judia, já morta, e pelo remorso por não ter compreendido a tempo o amor incondicional que ela lhe dedicou, de forma muitas vezes opressiva.

Agora, quando minha mãe de 82 anos estende as mãos pequeninas para me abençoar enquanto dou a ré no carro ao sair de sua casa, ou quando deito a cabeça em seu colo para receber um cafuné, essa lembrança e esse livro ecoam de alguma forma em mim, mesmo que eu não me dê conta.

Penso que eles me ajudaram a perceber, talvez mais cedo do que aconteceria de outra forma, o privilégio desse amor que não cansa, desse cuidado que não envelhece, e que assumiu inúmeras formas ao longo da vida – boas ou não tão boas, como acontece sempre nas relações entre seres imperfeitos como somos.

Uma discordância, uma briga, uma mágoa passageira. Mas também, e mais que tudo, um arroz doce, um bilhete carinhoso, um pão quentinho, uma palavra de otimismo, uma história, um conselho. O seu exemplo de mulher corajosa e alegre que não se deixou amargar pelo sofrimento. A sua capacidade de olhar sempre o lado bom da vida. A sua inesgotável disposição de fazer planos, porque, afinal, “eu posso viver bastante ainda e não dá pra ficar sentada esperando”. O seu esforço para me entender quando me desentendo com seus netos, meus filhos, e aceitar minhas razões – porque, afinal, apesar de seu imenso amor pelos netos, eu sou a filha, a que nasceu sob a sua proteção.

Assim, me afasto momentaneamente da minha condição de mãe, com suas alegrias e preocupações, e me recoloco, por obra dela, no lugar que ocupei primeiro, o de filha. E então, como na letra da canção de Alice Ruiz, “eu quero que esse momento dure a vida inteira, e além da vida ainda de manhã no outro dia”.

Sua bênção, mãe.

Feliz Dia das Mães!

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