Meu pai em silêncio

Meu pai é para mim um homem sem voz. A voz que foi dele se apagou em algum instante do qual não me dei conta, talvez bem depois que seu corpo foi sepultado. É provável que se tenha esvanecido aos poucos, que eu a tenha escutado ainda por um tempo depois daquele dia escuro e chuvoso em que levamos seu caixão até a igreja e, de lá, para o cemitério da cidade pequena onde morávamos.

Eu tinha 14 anos, já não era mais uma criança, mas pouco lembro desse dia e dos que passaram antes dele. Sei que vivi determinadas coisas, porque me dizem ou simplesmente porque sei, porque de alguma forma elas estão entranhadas na minha história. Mas isso não é lembrar. É como se fosse parte de uma ficção. Às vezes uma das minhas irmãs menciona um detalhe da nossa infância ou adolescência – uma brincadeira, um vestido que tive, uma festa à qual fomos, um encontro com alguém – e então coisas esquecidas voltam vívidas. Eu as redescubro com surpresa e assombro.

Isso acontece também com histórias sobre meu pai. Diante de uma lembrança, cenas antigas ressurgem, como foram ou mais provavelmente como as imaginamos, torcidas, exageradas ou embelezadas pelo tempo. Os personagens reaparecem, a emoção é reconstituída. Mas a voz não. A voz continua ausente.

Por isso meu pai também parece um personagem de ficção. Sei que ele existiu, com seu nome – Ernesto – que hoje lamento não ter dado a um dos meus filhos. Vejo as fotografias, relembro algumas cenas da nossa vida com ele – mas não é uma existência plena, porque não há uma frase que eu possa ouvir, não há a voz, e com ela meu pai também desapareceu.

Pergunto à minha mãe se a voz do meu pai era grave ou aguda, se ele falava alto, como nós que ficamos depois dele, ou mais baixo. Ela dá algumas indicações, mas nenhuma reconstitui a voz. Não há registros para trazer de volta essa voz desaparecida há mais de 40 anos. Nenhuma velha fita cassete, nenhum filme. Desse homem que foi meu pai só restaram fotografias.

Em muitas dessas imagens ele aparece com suas roupas de caça. Não roupas especiais. Roupas velhas que usava para ir com os amigos para os campos onde caçavam codornas que depois minha mãe preparava com molho e servia com polenta. Tento imaginar como ele se comportava nessas caçadas. O que conversava com os amigos, se costumava rir, se apreciava a natureza.

Há uma foto em que eu, com 6 ou 7 anos, uso um vestido branco de laise, tenho uma fivela no cabelo liso e pareço triste. Pendendo do ombro, uma faixa de tecido com a inscrição “Boneca viva” pintada grosseiramente com tinta branca passada sobre letras recortadas num estêncil. A foto é em preto e branco, mas eu sei que a faixa era azul. Ela ainda existe, relíquia de um concurso infantil em que a vencedora era a menina que conseguia mais dinheiro para a escola, vendendo votos impressos em bloquinhos de papel.

Estou dançando com meu pai; ele usa óculos e um terno que provavelmente era preto. Era uma valsa, suponho. A valsa das bonecas vivas, e pela fisionomia meu pai parece orgulhoso da sua. Pergunto-me se ele falou comigo durante a dança. Se disse que eu estava bonita, se me confortou pelo fato de eu não ter conseguido vender muitos votos.

Tento imaginar meu pai dizendo “Rachel”, o nome da minha mãe, tão bonita e tão jovem quando ele nos deixou. Mas a voz não volta, está sepultada.

Com inveja leio no jornal que o Flamengo recorreu à inteligência artificial para recriar a voz de José Antunes, pai do grande Zico. Mais de 30 anos depois de sua morte, “ele” pediu ao filho que fizesse um último gol no Maracanã, o templo do futebol onde nunca viu Zico jogar.

Cientistas britânicos foram ainda mais longe e recriaram a voz do sacerdote egípcio Nesyamun, numa operação complicada que utilizou um tomógrafo para imprimir em 3D uma cópia do trato vocal da múmia de 3 mil anos, depois acoplada a um alto-falante.

Mas a voz do meu pai não é alcançada pelas possibilidades tecnológicas, e não voltará. Sigo imaginando, na esperança de uma repentina percepção que me traga fragmentos desse som ausente, depositado no longínquo país estrangeiro que, como afirma Lowenthal, é o passado.

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